Fugi do meu país
porque nele me faltava a liberdade. Lastimei os que viviam sob ditaduras.
Senti-me solidário com todos os que sofriam, aqueles a quem era negado o sonho,
os que viviam temendo o amanhã, a eles me unia um sentimento de comunhão e
esperança de um mundo melhor, mais justo,
um mundo de paz e harmonia. Acreditei na bondade e sentido de justiça do meu
semelhante, na sua capacidade de altruísmo, dedicação ao bem comum, piedade com o
sofrimento alheio, todo o contrário do homo homini lupus.
Assim vivi e senti até à chegada do grande medo. Hoje tenho dificuldade em reconhecer o meu semelhante, noto a sua desconfiança e até o seu ódio e raiva, o seu desdém se um minuto me vê sem máscara, o gosto na denúncia, a pena que tem que a multa seja só de dinheiro quando ele a queria de prisão.
Sobre todo o convívio paira o medo, a possibilidade de sair dali em perigo de vida por culpa do outro, o outro que involuntariamente ou não é encarado como um potencial assassino.
Há dez meses que não convivo com a minha família, as "visitas" do Face Time, apenas aumentam a melancolia e o sentimento de solidão, o medo de que esta desumana situação que nenhuma ditadura conseguiu criar vai permanecer. Porque um vírus é a superameaça , o perfeito sonho totalitário e ditatorial. Nada de gulags, câmaras de gás, campos de concentração, prisões, polícias, serviços de censura, o rebanho avança para o extermínio pelo próprio pé e bem mascarado para que se veja que obedece.
Aos noventa anos o meu fim não deve tardar, mas o que muito me ensombra é que não me despedirei de um mundo em que tantos e belos sonhos de progresso foram realizados, mas de um que temo venha a ser para a maioria lugar de grande sofrimento e maldição.