sexta-feira, dezembro 11

Leituras nocturnas

Durante anos, para distrair o espírito naquelas horas que precedem o sono e evitar assim que ele conjurasse os seus maus fantasmas, li umas boas centenas de thrillers. Mas, como é sabido, todos os excessos, talvez mesmo o da felicidade e o do dinheiro, acabam por aborrecer e fatigar. Eu tinha chegado ao ponto em que, salvo raras excepções – Raymond Chandler, Dashiell Hammett, John LeCarré, Elmore Leonard, mais um ou outro – a intriga me não divertia nem trazia surpresas. Além disso, pacífico como sou, começava a pesar-me a acumulação de conhecimentos inúteis sobre o calibre de armas e munições, sobre as várias técnicas do assassinato por estrangulamento ou à faca, os modos de despistar o adversário, as receitas para mudar a realidade em ficção e tornar esta mais fictícia ainda. Depois de mortes sem conta, todas violentas e descritas com minúcia, tornei-me alérgico ao género. Hoje basta ver-lhes as capas para me sentir tomado de um ligeiro acanhamento por esse meu antigo vício. Porém, como as noites são longas e os fantasmas não dão trégua, passei à leitura de biografias, na esperança de nelas encontrar distração e algum ensinamento. Lidas umas quantas dezenas, todas volumosas, não me resta a impressão de me ter divertido em excesso ou de ter recebido lições que compensassem o dinheiro e o tempo.

Desde as laudatórias, como Life of Johnson, de Boswell, até às ridículas, como His way, a biografia de Sinatra, ou as infames, a do actor Peter Lawford, por exemplo, os seus milhares de páginas deixaram-me sobretudo um sabor amargo e um sentimento de decepção. Talvez porque esperava mais e melhor, ou por acalentar a ilusão infantil de que os padrões dos famosos seriam superiores, os seus ideais, nobres, os seus espíritos, sempre requintados. Mas afinal, que se trate de Shaw ou Onassis, Sartre, Nancy Reagan, Lawrence of Arabia, Baudelaire, a duquesa de Windsor ou o já citado Dr. Johnson, aquelas vidas são um enfiar de pulhices, bebedeiras, ambições loucas, traições, coitos ignóbeis, avarícias, golpes rasteiros, roubos, mentiras, o curso de baixezas, enfim, algo que não ficaria mal no currículo de um criminoso ou de um vigarista. Só que aos primeiros, a fama, o talento, e por vezes o dinheiro, salvam-nos da prisão e da ignomínia que cabe em geral a estes últimos, vítimas anónimas da mesma lógica implacável que nas batalhas sistematicamente mata os soldados, mas poupa e condecora os generais. Poucos foram também até agora os biógrafos que mereceram a minha simpatia ou o meu respeito. A maioria dá a impressão de se meter ao trabalho de escrever a vida dos seus biografados seguindo a receita comercial consagrada de dosear alternadamente o riso e as lágrimas, o gentil e o escabroso, a confidência e o testemunho dos íntimos. Mas eu, leitor, não enriqueço o espírito, nem sequer o distraio, ao tomar co nhe cimento detalhado das peidorradas de uns, da incontinência dos outros, da senilidade de A e dos vícios secretos de B. Nada disso, ao contrário do que muitas vezes se afirma e pretende, auxiliará a compreender melhor os poemas do poeta X ou os quadros do pintor Y, e não será a revelação dos vícios secretos e ridículos do escritor Z que facilitará o compreendera sua nebulosa escrita ou o apreço do seu suposto génio. Que me interessa ser informado de que no dia em que Sartre morreu, uma Simone de Beauvoir, a cair de bêbeda, insistiu em se deitar sobre o cadáver gangrenado do filósofo? Sobre o cadáver. Note-se o detalhe e tirem-se as conclusões  que merece o rigor factual de semelhante testemunho. Eu, que infelizmente há muito deixei de ser criança, sei que de tudo se faz comércio, que quase nada é puro e sob a capa do dever de informar tão objectivamente quanto possível se satisfaz bom número de curiosidades baixas. Muitos biógrafos actuam na zona estreita em que o ilícito e o imundo se não distinguem do permitido e do decente. Mas é isso que melhor se vende e o próprio biografado, por quem antigamente era de regra esperar que estivesse morto – Dr. Johnson foi excepção – hoje em geral colabora entusiasmado no espiolhar da sua vida e da sua intimidade. Talvez como precaução. No caso de lhe virem a negar a estátua póstuma, ao menos sempre terá essa homenagem. Decepcionado, melancólico, depois de deixar de ler thrillers abandonei também as biografias. E às noites retomei um hábito da minha infância: enquanto me não dá o sono leio um dicionário.

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in Mazagran, Quetzal, 2012.