domingo, agosto 16

Será que nenhum compreende?

Tinha de acontecer, mas pelo menos aqui a culpa não é desta situação em que agora vivemos, assustados, os nervos à flor da pele, a perguntarmo-nos quando será que o vírus  bate à porta e nos despacha para os cuidados intensivos e a última viagem.

Aborrece-a que assim seja, mas tem de aceitar que a culpa é de ambos, do filho e da nora, a Vanessa, se bem que em partes desiguais, pois se meter a mão no peito talvez seja mais do filho, o Samuel, devido ao feitio repentino e mandão que tem e ao que lhe parecem exigências tolas, como não deixar que a rapariga fume em casa, só na varanda, descalce à entrada os sapatos da rua, desista de fazer mais tatuagens, não pinte as unhas de preto.

O casal tem atrás de si um ano de namoro, dois de matrimónio, felizmente sem filhos, vivem de uma maneira que ela própria tenta compreender, fechando os olhos ao que vê e dizendo-se que é à moderna, mas longe de significar que a situação lhe agrade.

Como pitorescamente confessa, nunca estranhou que o Samuel andasse a molhar a pena noutros tinteiros. É homem, ela própria teve de perdoar muito ao Orlando, mas nunca se vingou dele e mesmo há tantos anos viúva nem por sombras pensaria em lhe pôr os cornos. Agora que o filho dê tanta liberdade à nora, ela vá com quem lhe apetece para onde lhe apetece, volte a casa de madrugada, isso é que nunca entrará no seu entendimento, põe o mundo às avessas, é o carro diante dos bois.

Deixou-a em choque vê-lo aparecer a meio da noite, tão entornado que só gaguejava, mal teve tempo de o agarrar pelo braço e guiá-lo até ao sofá, onde ficou enroscado como quando era criança.

Por volta do almoço viu-o abrir os olhos, e esperaria tudo mas nem por sombras que se pusesse a chorar.

- Então? Foi ela?

Teimoso desde pequeno só dá resposta quando lhe apetece, mas desta vez surpreendeu-a, acenou que sim ao mesmo tempo que passava a mão a secar as lágrimas.

- Fugiu?

Ele a abanar a cabeça que não, o mesmo ar de quando o apanhava a roubar-lhe o porta-moedas, até que com rodeios e contradições, atrapalhando-se nos detalhes, confessou que tinham discutido, às tantas zangaram-se, ela apanhou-o desprevenido, deu-lhe um empurrão e foi escadas abaixo.

- Porquê, Samuel?

- Diz que não sou bom na ca...

Foi a sua vez de ficar calada, presa num torvelinho de amarguras e decepções, raivas, dores e silêncios, pois também o Orlando nunca fora bom, mas ela aprendera a fingir o que tinha a fingir, dizendo-se que então teria de ser assim porque ele não compreendia.