segunda-feira, agosto 10

Criei-me a falar sozinho

"Criei-me a falar sozinho, a brincar sozinho, forçado a inventar um mundo que, pela fantasia, compensasse o escasso território do pátio em que me isolavam, como se o contacto com outros fosse um perigo ou desse peçonha.

Deixa marca o só ter galinhas e cães por companhia, passar os dias com duas mulheres silenciosas, raro ver mais longe do que deixava a porta quando se abria, encolher-me cada vez que meu Pai acontecia passar.

Sofri? Creio que não. Ignorava outro viver, e o que  apercebia das vidas alheias causava-me um misto de nojo e insolência, era próximo e ao mesmo tempo distante, estranho como visionar um filme. Em parte devia-se isso à circunstância de parecermos o que não éramos, de num meio de pobreza extrema a nossa mediania ter ares de abastança, e meu Pai, "o Senhor Engenheiro", assumir atitudes de fidalgo e dono só possíveis num fim do mundo como as Quintas do Maçarico.

O ele não ser engenheiro de coisa nenhuma, e de seguida a um vago estudo no que se chamava então a escola de regentes agrícolas se atribuir o título, era astúcia sua, maneira corrente de distinção. E os que dele dependiam, de facto todos, usavam esse tratamento como mostra de respeito, mas era também a maneira  segura de, verdadeiros servos, ocultar o ódio e o desprezo que lhe tinham.

Vendo-o feudal de mentalidade e temperamento, cedo adivinhei que se arrogava o direito de senhor e, interpretando meias palavras, certos olhares, movimentos de queixo, compreendi que poucas lhe escapavam e, à moda antiga, sem vocação para o Altíssimo, uma ou outra tinha sido levada a esconder a vergonha num mosteiro.

Galaroz, todos lhe conheciam o fraco, mas quando disso se falava era em sussurros que terminavam mal chegasse um terceiro ou se visse sombra perto. Para mim, o nome e umas poucas palavras surpreendidas num bichanar de minha Mãe com Felisbela, tinham sido a chave do mistério que em certas noites o levava a casa do tanoeiro "ver" a Deolinda, a graciosa de modos senhoris que raro se mostrava porque ele, ciumento, preferia que não saísse à rua.

Há mistério no facto de eu, criança, sem que mo contassem, não apercebendo mais que uma palavra aqui e ali, um ou outro sussurro, soubesse tanto de meu Pai, da existência de Deolinda, não precisar que me dissessem que quando o "Meças" – então ainda lhe chamávamos o "Antolinho" – aparecia na escola com pisaduras era porque em casa lhe batiam por refilar contra meu Pai.

São sem conta e antigas as razões de não se gostar de um filho, abundam no Velho Testamento, na mitologia grega, com pouco esforço as encontramos à nossa volta.

O que distinguia a raiva que meu Pai me tinha era o lado patológico, a obsessão de que eu, criança, pela simples maneira como o olhava ou respondia sem  encará-lo, fosse capaz de penetrar o seu pensamento, os seus fins e segredos. A maneira como me gritava "Sai daí!", era menos uma ordem do que um exorcismo, um tarrenego que me impedisse de ver e saber o que não era da minha conta, nem para a minha idade.

E pode ser que sim, talvez tivesse razão, quase compreendo que por volta dos dez anos, como se levasse uma encomenda, me tenha entregue na Rua de Cedofeita à Dona Rosa, flor das hospedeiras e porto de abrigo para o miúdo que levaria anos em busca dos porquês e, chegado à meia idade, sabe que nunca virá a termos com a rejeição."

In O Meças – Quetzal, 2911