domingo, julho 19

Um par de bofetadas


São bons amigos, todos a rondar os setenta, depois do almoço traz cada um sua cadeira e vão sentar-se junto do coreto para a conversa e um bocado de Sueca. Suspiram de alívio se o Belarmino demora ou não vem, porque então ficam mais sossegados. É que ele, que de si próprio diz ser uma pilha de nervos, seja qual for o assunto encontra sempre maneira de discordar ou contradizer, às vezes excitando-se a ponto que fica roxo, com a voz esganiçada e uns tremores que lhe dão no braço desde que teve o AVC.
Infelizmente é facto, neste tempo que estamos a viver sobram os motivos de desacordo e irritação. De memória de gente, nem mesmo quando havia guerras ou aconteciam grandes desastres como terramotos e tsunamis, nunca as pessoas se mostraram tão aflitas e tão medrosas, prontas a apontar o dedo quando lhes parece que os outros se riem do medo, desdenham dos avisos ou têm um ar desleixado se se lhes fala dos  perigos que correm e dos que podem fazer correr aos outros.
O Belarmino, no mais uma pessoa de boas qualidades, sempre amigo do seu amigo, nesse particular da pandemia que nos traz preocupados e duma maneira ou doutra a todos transtorna a vida, parece ter agora um prazer dobrado em, como ele diz com um sorriso desdenhoso, "ser do contra", atitude que gosta de explicar como a única que convém ao cidadão cioso dos seus direitos e lhe permite opor-se à tirania dos caciques. Porque seja como for, desde que o mundo é mundo sempre houve tirania, mas agora mais do que nunca, pois nem no tempo de Salazar se viu um tal abuso do poder. Houve então a gripe espanhola, a tuberculose, o tifo, a malária e ninguém sabe ao certo quantos milhões morreram. Mas não venham com tretas, nem precisam de lhe lembrar que os tempos eram outros e não se comparam a estes, do que tem a certeza é que se Salazar tivesse dado ordem para trancar as pessoas em casa, ainda por cima mascaradas como se fosse Carnaval, tinha havido uma revolução. Nesse tempo o povo sofria, aguentava muito, passava mal, mas tinha tesura, não era esta carneirada com o rabo entre as pernas e olhos de medo, a iludir-se com desinfecções e esperançada de que o "bicho" só goste do vizinho.
Vêem-no chegar, surpreende-os que não traz cadeira e, novidade, apoia-se a uma bengala que antes não usava, e como nunca o viram com tal modo a pergunta sai de todas as bocas ao mesmo tempo: - Então pra que é isso?
- A bengala? É pro que me chatear com avisos do vírus, porque pra um par de bofetadas já não tenho força.