Desde o suicídio da
Amélia as horas piores são as da madrugada. É como se tivesse dentro de si um
despertador que o acorda por volta das três, e quase sempre logo de seguida começa
a desenrolar-se um filme de situações confusas, onde umas vezes é personagem,
noutras se torna um estranho a si mesmo, noutras ainda escapa-lhe de tal modo a
noção da realidade que acende a luz e olha em redor transtornado, um instante descrente
de que está na cama.
Família não tem e com
os amigos não arrisca intimidades, sabe demais que o sofrimento alheio só lhes
interessa para a bisbilhotice ou aquele desdém com que os inseguros escondem o
próprio medo. De si mesmo sabe que nunca foi de confidências, não lhe passaria
pela cabeça consultar um psicólogo, isso tanto por medo como insegurança, mas
também pela certeza de que nunca conseguirá libertar-se da prisão em que parece
ter nascido ou ainda criança o
aferrolharam.
Ele solteirão, Amélia
divorciada, tinham casado tarde, e talvez porque não nenhum deles fosse de arrebatamentos,
o tempo foi passando sem ondas nem sobressaltos, nada que prenunciasse a hora
em que chegou a casa depois de dois dias de serviço e a encontrou estendida no chão, imóvel como se estivesse
morta.
Suspirou de alívio
quando ao tocar-lhe a viu estremecer, dizendo-se que provavelmente fora desmaio,
e com alguma dificuldade porque era corpulenta, lá conseguiu sentá-la. Poderia
esperar tudo, mas nada o tinha preparado para semelhante bafo de álcool, os
espasmos do corpo, a demência daquele rebolar dos olhos, o som rouco das
palavras que não conseguia dizer.
Ajudou-a a deitar-se
no sofá, viu que adormecia, pôs-lhe uma almofada, agasalhou-a com um cobertor,
limpou o vómito e então, ainda em choque, a hesitar se lhe apetecia comer, decidiu
por um xanax e um copo de água. Descalçou-se, mas não conseguiu despir-se nem
teve consciência de que se deitava, e quando o estrondo de pancadas o fez acordar cambaleou para a porta,
estranhando que não tocassem a campainha.
Durante meses viveu
como que anestesiado, revendo por instantes como lhe tinham mostrado o cadáver
para que a identificasse, o interrogatório na esquadra, a repetir que não fazia
ideia do que a levara a atirar-se da varanda, pois não eram de zangas, nunca
lhe ouvira queixas, tinha sido um choque. Mas a ninguém falará do papel que
encontrou na mesa e em que Amélia julgou escrever umas linhas, mas o que lá
está são apenas gatafunhos e no fim o que parece o seu nome em forma de
assinatura.