Conta ele e é
verdade, são pequenos nadas, às vezes uma palavra, um gesto, o tom de uma
resposta, o modo de olhar, num casal pouco é preciso para que comece a
discórdia, e esse pouco pode ir insensivelmente ganhando peso até que chega o
ponto em que, tal um rastilho, às vezes arde depressa, noutras parece que se
apaga, mas deixando a ameaça que, embora invisível, nele o fogo pode continuar
a arder e se por acaso rebenta não se lhe prevêem as consequências.
Ambos gostam de música
e se bem que a preferência do Renato vá para a clássica e Lena continue fanática dos Beatles e dos Rolling
Stones, cada um sempre aceitou o gosto do outro, ele acompanhou-a muitas vezes
a festivais pop, Lena nunca se negou a ir a um concerto de Schoenberg ou
Shostakovich, mesmo sabendo que lhe custaria esconder os bocejos e manter-se
acordada.
Por mal, agora que se
aproximam da velhice, tanto os festivais como os concertos são memórias cada
vez mais longínquas, e ambos se dão conta de um começo de surdez, pelo que
mesmo em casa raramente ouvem música. Quando o fazem é separados, e pouco a
pouco foram deixando de discutir gostos ou trocar impressões, talvez também
porque a idade lhes aumentou a impaciência e há horas em que um nada dispara a
irritação.
Embora saudável e bem
disposta, Renato logo de início notou que havia ocasiões em que de repente a
esposa se queixava. Ora era uma dor de cabeça ou pressão no peito, pontada no
ventre, um "ardeúme" nos joelhos, náuseas, falta de ar... Zangava-se
se ele insistia que fosse ao médico, zangava-se também quando lhe perguntava se
a dor tinha passado, e por fim aprendera a mostrar-se indiferente.
Estava porém longe de
imaginar o desfecho de uma conversa durante o almoço de domingo passado, quando
tinham gracejado que não eram tão velhos como Mick Jagger e ela recordou ter
lido que Vladimir Horowitz, o célebre pianista, quase só se alimentava de
linguado cozido e tinha chegado aos oitenta e seis.
Nesse momento devia
ter posto travão à língua, mas escapou-se-lhe que Horowitz, um formidável
hipocondríaco, durante trinta e tal anos tinha tido um médico pessoal que o
examinava no quarto logo ao acordar, e este uma manhã, farto das lamúrias de
quem gozava uma saúde de ferro, disse-lhe com azedume que talvez à hora da
morte deixasse de se queixar, o que logo ali lhe valeu ser posto no olho da
rua.
- Isso é uma
indirecta? – perguntou Lena.
Como em vez de se
desculpar ele não se conteve e desatou a rir, estão de relações cortadas.