domingo, maio 17

O senhor João


É facto assente e cansativo repeti-lo: desde o 25 de Abril este país mudou de tal forma que se os que morreram antes voltassem, iriam julgar-se numa América ou na terra de leite e mel de que fala a Bíblia.
Foi grande a mudança, mas muito há também que na alma e no coração da Pátria resiste ao tempo como se estivesse de pedra e cal, sobressaindo entre mais o amor das aparências, a santa inveja, a hipocrisia das maneiras, a arrogância da pequenez.
Conte-se então o caso, de modo que haja lugar para a irritação de alguns, a chacota doutros, o cinismo de tantos, e cada qual encontre nele o barrete que lhe serve.
Partiu jovem para a América, reconheceram-lhe o talento, tem lugar cativo entre as autoridades mundiais do seu ramo de Ciência, reformara-se havia meses quando a tragédia lhe fez perder a mulher que tinha sido o amor da sua vida. Sem filhos nem parentes, no rescaldo do choque ocorreu-lhe que a modos de homenagem poderia realizar o sonho que a falecida acalentara: comprar casa na vila onde ela tinha nascido pobre, mas tivera uma infância feliz.
Desde então passa ali meses de recolhimento, com um trato social reduzido, desatento às convenções, viajando de longe a longe para algum congresso, a lida de casa ao cuidado de uma  despachada Teresinha, mãe solteira de língua afiada e uma visão do próximo sem espaço para lindezas.
Foi a Teresinha que uma tarde, sem rodeios, nem deixando margem para discordância, lhe disse que teria de se vestir doutra maneira e não ser tu cá tu lá com todos, porque as pessoas murmuravam, não lhe tinham respeito nem o tratavam como era devido.
Encolheu os ombros ao vê-la amuada e saiu para a consulta do dentista. Ao chegar a sua vez teve um sobressalto de alerta quando este, que pela idade podia ser seu neto, lhe atirou jovial apontando a cadeira:
- Então, senhor João, qual é o problema?
Senhor João? Hesitou um segundo antes de dizer ao que vinha, desnorteado com a arrogância do pexote e perplexo demais para lhe ensinar maneiras, ao mesmo tempo ciente de que ali ao  lado, censura personificada, a sombra da Teresinha o encarava com azedume e desdém.
Fala quase num sussurro, conta aquilo num tom que parece desprendido, mas que a melancolia da sua expressão contradiz: - Claro que noto, mas sou bom a fingir de simples e a Teresinha diverte-me com os seus sermões. O caso é que a pátria não corresponde às esperanças que me deu e a minha gente faz-me sentir um estranho. De modo que não vejo  razões para ficar, volto para donde vim.