domingo, maio 3

Fôrma para o seu pé


Para certas verdades, sobretudo as que doem, o melhor é usar a ficção. Contando francamente  as bizarrias da vizinha, as do amigo do peito, as do familiar que põe à prova a nossa paciência e sabendo-nos acanhados ou cobardes descaradamente pisa o risco, de certeza dava multa ou cadeia. Por essas e semelhantes razões vivemos no mundo encostados a aparências e mentiras, as quais funcionam à maneira dos lubrificantes que diminuem o atrito nas engrenagens e facilitam o andamento da maquinaria.
Vamos então fantasiar a história do Cunha, que parece ter vindo ao mundo com um singular destino. Desde a gentileza do trato à inesperada generosidade ou à singular atenção, quase tudo nele é aparência, a ponto que se tivesse seguido uma carreira teatral em vez da Engenharia, por certo tinha alcançado o topo, não teria ficado chefe das Águas e Esgotos.
Soube escapar à prisão do casamento, mostrando um talento raro para satisfazer grátis o que antigamente se chamavam “os prazeres da carne”, ao mesmo tempo que com promessas a que sempre faltava conseguia, também sem despesa, que as suas conquistas o livrassem dos cuidados de cama, mesa e roupa lavada.
Mas os anos vão depressa e a reforma perto, os achaques uma ameaça, era a altura de se assegurar o conforto e os cuidados que se esperam do matrimónio, não fosse o caso de ele se sentir por natureza um impenitente celibatário e o seu egoísmo pouca ou nenhuma margem deixar para as necessidades, os desejos, ou os interesses alheios.
Assim sendo e fora de questão dar o laço, restava o concubinato, o que seria simples não fosse a raiva que a escolha iria levantar nos amores antigos, o que ele resolveu à moderna com buscas no Facebook. Aí encontrou Wladja, que trabalhava num restaurante em Vila Nova de Milfontes e pela maneira como se exprimia na nossa língua ninguém diria que era búlgara, mas alentejana de nascimento.
Anunciou-lhe a visita, chegadas as férias meteu-se a caminho do Alentejo, encontraram-se, o clique foi instantâneo e no fim do Verão estavam de casa e pucarinho, deixando de boca aberta os que conheciam o Cunha, que finalmente tinha encontrado fôrma para o seu pé. E que fôrma!
Os que juram saber de mulheres garantiam que aquilo não ia durar, porque nem a estrangeira tinha modos de escrava nem o Cunha aguentava freios, esperassem que a demora não ia ser muita. De facto não foi, nem ele confessará que a búlgara na calada lhe trocou as voltas, esqueceu a pílula e ele aprendeu que se diz trigémeos.