domingo, abril 26

O fato para o entêrro


A obrigação de ir ao entêrro justificava o fato escuro, tinha-o despendurado do roupeiro e ficara de boca aberta, a duvidar que lhe pertencesse, mas finalmente vestiu-o para ver se ainda  servia e parou a olhar o espelho, descrente que os anos o tivessem mudado de tal forma e que de tão abonado o fato fizesse dele um espantalho.
Fora de questão o dar-se em espectáculo ou que o julgassem menos respeitoso ao vê-lo aparecer desleixado como andava em casa, e ali ficara, certo que não iria experimentar os outros fatos, porque havia muito que os não tinha vestido, o resultado seria o mesmo.
Foi então que lhe ocorreu que com os regulamentos de agora talvez nem pudesse ir, os funerais são só para a família, e com um gesto de desânimo despendurou do roupeiro os outros que lá tinha, encheu com eles três sacos grandes dos do lixo.
Olhou para a roupa que restava, abriu uma gaveta aqui e ali, estranhando tantas camisas, gravatas, pares de sapatos de que não se lembrava, hesitante se devia guardar o preciso e dar ao resto igual destino, ao mesmo tempo a temer que se o fizesse talvez não parasse, pois há muito aprendeu como são supérfluas tantas coisas que o rodeiam, a ponto de por vezes se perguntar o sentido de uma existência como a sua, sem parentes próximos, os vizinhos gente que desconhece, os amigos espalhados por longe, tendo por magro conforto a rotina dos dias que se habituou a aceitar com uma passividade de penitenciário, indiferente se são de chuva ou sol.
Tem consciência de que nunca foi o que se chama um optimista, mas o destino também não lhe poupou contratempos e pode dar cartas em matéria de solidão. Contudo, por orgulho ou teimosia nunca virou a cara às dificuldades, nem vai cair na armadilha de deixar que o assustem com as ameaças e os perigos que dizem são de agora, mas pouco diferem dos que tem conhecido a vida inteira. Diferente e aterrador, o que a ele tira o sono é o mêdo, esse sim, que nestes últimos meses vê ir aumentando e, uma vez generalizado, de pouco precisa para dar razão ao provérbio homo homini lupus – o homem é um lobo para o seu semelhante.
Finge que não repara, mas nota-o quando vai ao supermercado, a maneira como uns o olham amedrontados, a ver nele a ameaça de um perigo mortal e outros se afastam com a pressa de quem teme uma bomba-relógio.
Este perigo há-de passar e outros hão-de aparecer, sempre assim foi, mas talvez a tragédia maior esteja no medo, que quando não pára de crescer torna impossível a vida em sociedade.