sábado, janeiro 11

À beira da campa


­­­­­­O pior sabe-o ele demais, nem são as horas de solidão mas as do fingimento de que está tudo bem, que as coisas vão como de costume e há que aguentar, todos temos a nossa cruz, é a vida. Depois o sorriso de resignação, um aceno e até logo, vão os outros rua adiante caminha ele para o cemitério num passo lento de rotina e cansaço, perguntando-se porque o faz, nunca se dando resposta.
Àquela hora não há gente por ali, mas se alguém o visse assim, parado junto da campa, pensaria que estava a rezar. Não está, nunca foi de crenças, para ele nascemos, vivemos, acabamos e é tudo acaso, lotaria, mesmo os que ganham prémio terminam na cova.
No começo foi para obedecer ao costume, evitar murmúrios, mas a ninguém confessaria que tinha continuado a fazê-lo para se obrigar a sair de casa, a paragem no cemitério uma aparência de piedade, até que uns meses depois ao abrir o portão sentiu-se desequilibrar como se o empurrassem ou tivesse tropeçado, e o corpo a tremer a respiração presa encostou-se ao muro, se era um ataque acabava ali.
O alívio veio aos poucos, já não sentia a opressão no peito mas continuava encostado ao muro, receoso de perder o equilíbrio, estranhando o sentimento que o tomava, uma calma como raro sentira, ao mesmo tempo algo a forçá-lo para que recordasse as feições de Emília e abrandasse a raiva, cedesse ao perdão.
Quem o tivesse surpreendido assim, agora sentado no rebordo da sepultura, a cabeça escondida entre as mãos, não poderia imaginar que naquele momento se fazia ali um ajuste de contas, o homem de aparência serena a explodir no íntimo de uma raiva anos contida que não seria estranho se o vissem a gritar e a esbracejar.
“Sem me quereres mal foste a minha perda. Por ti deixei de ser quem era, obrigaste-me a uma vida de aparência e fingimento, a fazer de conta para ocultar o que sentia, desejava, e  precisava quase tanto como o pão para a boca. Foi culpa minha também, que tendo nascido  sem alma de escravo deixei que só a tua vontade contasse, falto de coragem, fosse ele uma vez, para me opor e desobedecer. Serão muitos os casais assim? Sem amor, intimidade zero, sexo idem? Recordas a nossa primeira noite, quando me disseste que esperasse, fosse paciente, a ocasião viria? Nunca veio nem se falou mais nisso, fizeste de mim o teu eunuco, tão bem castrado que deixei de ir às putas para não sofrer a humilhação da minha impotência e a memória da tua crueldade.
Não creio na vida eterna, mas se ela existe que seja a tua nas penas do Inferno.”