sábado, setembro 14

O medo dos incêndios


Naquelas histórias do príncipe e da rapariga de pé descalço já ninguém acredita, pois há muito desapareceram os príncipes, e pé descalço só lá para os confins da Índia ou do Bangladesh, lugares que nada têm a ver com o nosso dia-a-dia, onde tudo se vai lentamente nivelando: os príncipes a fingir de plebeus, os pobres gastando o pouco que têm para o não parecerem.
Também desta vez esconderei os nomes, digamos então que o Eduardo é um simpático quarentão com prédios de seu. Delfina, a sua cara metade, terá menos, só que de certeza o vai ultrapassar quando receber a herança da “Sanfoneira”, tia e madrinha cuja vida daria um romance camiliano, pois entre artes da cama e do fogão levou um cónego e um ourives à sepultura, ambos esgotados por apreciarem demais a culinária da dona, e não darem conta que dia sim dia não o seu almoço incluía doses cavalares de pau de Cabinda,
A herança vai demorar, porque a “Sanfoneira” está rija e de momento ocupada com o cerco ao  Pinto das Oficinas, mas não é isso que agora preocupa o Eduardo, sim a maluqueira que a Delfina partilha com a madrinha: o medo dos incêndios.
No começo arriscava uns gracejos, mas descobriu que era avisado mudar de táctica e assim, se por exemplo estão a ver o “Jornal das Oito” e a televisão mostra um incêndio, agarra-a pelos ombros e imita razoavelmente um medo solidário.
Embora se dê conta da hipocrisia, também sabe que todo o cuidado é pouco se quer manter a paz doméstica e evitar percalços no que respeita a guita da “Sanfoneira”. Contudo, não nega   que há ocasiões em que sente que quase “estoura”, como quando no Funchal ela o surpreendeu ao tirar da mala uma escada de corda, diminuta mas resistente, que a madrinha lhe oferecera. Sorriu do cuidado com que a pendurava na varanda, deixou de sorrir ao vê-la zangada, mandando que fosse à recepção mudar de quarto, dali a escada era curta, mil vezes lhe tinha dito que no máximo aceitava o segundo piso, mais alto nem pensar.
Da ideia de mudarem para o condomínio já não fala, quando foram vê-lo o comentário que fez  foi que com aquela altura o prédio era uma ratoeira, as escadas dos bombeiros só chegam aos trinta e tal metros.
Por ela deixou de fumar, fez-lhe a vontade quando quis que mudassem do gás para a electricidade, mas sente que já se inclina mais para o divórcio do que para o psiquiatra:
- Acaba com a mania ou aceita as consequências. Não acha?
Dispenso-me de responder, honro o princípio de que “entre homem e mulher não metas a colher.”