sábado, setembro 21

Filhos são cadilhos


Vem ele contar que a família anda em rebuliço, há meses que as desavenças são constantes, a mãe a ameaçá-los de que está a acabar as suas memórias, já assinou o contrato na Chiado Editora, e filhos, filhas, noras, genros, netos e netas, nem todos vão ficar bem na fotografia, por isso que se acautelem, não lhe cheguem muito a mostarda ao nariz.
Ele é o Joãozinho, professor num colégio e o único celibatário da tribo, a mãe é a Dona Carminda, os outros serão uma dúzia, mas se os encontrar na rua creio que os não reconheço, pois raras vezes lhes tenho falado.
Ali há dinheiro. A Mater famílias, viúva há anos, segura a bolsa às mãos ambas, tudo faz para merecer a alcunha de “Unhas de fome”, o seu presente de aniversário é sempre o mesmo e igual para todos: uma caixa de chocolates Merci.
Cara de enterro, os rodeios do costume, informado da minha saúde o Joãozinho senta-se, começa um relato destrambelhado de queixas e acusações, esforça-se por me cair nas graças, mas não é preciso uma perspicácia por aí além para se ver que não encaixamos. Fora ser um patarata, irrita-me com aquele modo de que tudo o que diz termina em reticências.
É história antiga, a de no século passado a Carminda e eu termos tido um caso  que nos levaria ao altar, não fosse o ela descobrir que o filho do Moita das conservas de Matosinhos era um seguro de vida, enquanto comigo seria uma mão à frente outra atrás. Isso não impediu que me convidasse para a festa do casamento, mantivéssemos a amizade, e desde que enviuvou vem de vez em quando desabafar da ganância da família, que desespera de vê-la com uma saúde de ferro e nada disposta a acelerar a herança.
Mais isto e mais aquilo, o Joãozinho tossica, assoa-se, e evitando olhar-me finalmente abre o jogo. Não tem a certeza, é antes uma suposição, mas pelo que lhe tem ouvido quando fala dos meus escritos, poderia jurar que quando tiver o livro pronto a mãe me vai pedir que o leia.
Espero que continue, mas ele desvia os olhos, entrelaça os dedos, dá a impressão de que hesita ou se arrependeu, até que finalmente, gaguejando, assegura que fala em nome de todos e abre o jogo: poderia eu avisá-los, no caso em que o que a mãe escreve lhes traga prejuízo? E arranjar-lhes uma cópia para que possam proceder?
É talvez porque gosto dos filmes de Tarantino, mas há horas em que não me contenho: faço cara de mau, cerro os olhos a sublinhar a ameaça. Desta também assim fiz, mas quando os voltei a abrir estava só, e desde então do Joãozinho nem cheiro.