(Clique)
"- Sabe que
mais? – gritava ela, rouca, fora de si. – Deixe-me em paz! Vá curar a bebedeira
pra outro lado! Chame o tio e metam-se os dois na cama, como de costume. O
velho não vê, nem se importa, grandessíssima puta!
Num gesto
alucinado quis bater com o receptor no descanso, mas ao falhar a pontaria
escavacou-o contra o rebordo da mesinha de cabeceira.
O choque pareceu
trazê-la à realidade. Perplexa, seguia com os olhos o telefone que, tendo
saltado da peça quebrada, pendulava seguro pelos fios, tornando irreal e
incoerente o berreiro da mãe.
Levantei-me para desligá-lo
da tomada, e depois, sem palavras, porque nenhuma a confortaria, tomei-a nos
braços, a fingir que não ouvia os soluços, ignorando as lágrimas, a acariciá-la
para que esquecesse. Até que acalmou e adormeceu.
Mais do que
doutras vezes tive inveja do sono que só se dorme na juventude e, durante horas,
fiquei acordado, de costas, ela a pesar-me no braço. Surpreso de compreender a mãe e lastimá-la, pois embora
discordasse do aparato com que tinha sonhado e, a seguir, a família junta numa
grande comezaina, festa, convidados, presentes, música, bebida à farta,
reconciliações e beijos, também eu, no íntimo, desejara outro dia. Confusamente
seguro de que a mulher adormecida junto de mim, ou a rapariga, talvez a criança
que ela ainda era, jamais partilharia comigo as harmonias por que eu ansiava.
De facto, pouco
nos unia – a insónia escalpela sem piedade as ilusões – e o que eu sabia dela,
ou ela de mim, não eram mais do que aparências, um verniz que resistia às
confidências, a fronteira onde paravam os impulsos e a ternura.
Tínhamos
sinceramente apalavrado o casamento, como se o sim, o selo, tivesse mágica
suficiente para derrubar muros. Não somente os nossos, mas os que vinham de
trás, levantados por outros. Dizendo-me eu que bastaria querer, esperar, dar
tempo, e a felicidade deixaria de ser o lampejo que por vezes entrevíamos, para
se tornar duradoura.
Todavia, na
realidade da noite tudo isso aparecia remoto, desfocado, inconsistente,
agravado pelas ironias que o destino trama.
Julgando preparar
o futuro, eu apenas mudava de cadeias. Nunca mais me poderia esconder de mim
próprio sem a certeza, o remorso, de que conscientemente a deixava de fora.
A protegê-la?
Não. A poupar-me. Para Martha o meu passado permaneceria a incógnita que era, e
o meu Chaco um país onde as suas razões não tinham entrada."
* * *
In "A Sétima Onda".