sábado, março 1

O espólio

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De longe a longe, por vezes com anos de entremeio, acontece cruzar-me com o colega e, obedecendo ao ritual, trocamos então as palavras do costume, inquirimos da idade, do estado dos ossos, fazemos um ou outro comentário, discutimos este e aquele colega, sobretudo aquele, que em nossa opinião goza de excessivo favor do público, e arrebanha desusada maquia.
Passado o instante de pausa em que saboreamos o café ou a cerveja, dispara ele a inevitável  pergunta que desde o início da conversa aguardo, e nunca falha:
- Já decidiste a quem vais deixar os teus livros e o teu arquivo?
Respondo, com sinceridade, que ainda não pensei nisso, e provavelmente não vou pensar. Toma ele então um ar compenetrado, baixa os olhos, põe a voz no grave, diz pela enésima vez:
- Vou deixar a minha biblioteca, o meu espólio e a minha correspondência à Biblioteca Nacional.
Dou às feições o ar de solenidade que o momento pede, ao mesmo tempo que reteso os músculos, a suprimir a maliciosa gargalhada. Porque vamos lá ver:…
Não, não, seria crueldade. Não vamos ver nada, fica a história por aqui.