Modo calmo, bom aspecto, excelentes maneiras . Seria um alerta se tivesse o ar desvairado que se espera do desequilíbrio ou da doença, mas quando alguém depois cita Nietzsche com conhecimento de causa, refere Heidegger e Sartre, trauteia uma passagem de Bach, recorda a energia da estatuária de Zadkine, e mais, muito mais, num ritmo estonteante, não se vê razão para manter o modo defensivo e a desconfiança que o visitante estranho causou.
Baixa-se a ponte levadiça. Trocam-se sorrisos e pontos de vista, ouve-se com atenção merecida a análise que faz da crise económica e de como nela influi a posição da Índia e da China.
Isto dura boa meia hora. Duas ou três vezes, um relâmpago, creio notar-lhe o que parece uma inquietude, um modo de súbita ausência.
Pouco a pouco o discurso vai acalmando, entra numa forma de intimidade, revela que por duas vezes esteve preso, acusado de homicídio, uma outra por chantagem. Que andou muito metido na droga. Que à nossa volta não é só a Maçonaria, não é só a Opus Dei, são inúmeras e secretíssimas as redes, as conspirações, os interesses apostados em terríveis mudanças da sociedade.
- Um dia destes, se tiver tempo, quero contar-lhe certas coisas. Garanto que dá um romance. Mais impressionante que O Código Da Vinci.
Como o vizinho chega para discutir a lista dos mordomos da festa de São Lourenço, aproveito a desculpa e despeço-me do estranho, que me aperta a mão e sussurra que voltará.
- Com documentos! Com provas!
Aceno que sim e vejo-o ir rua fora. Grande inquietude causa enfrentar a mistura de inteligência com o transtorno da mente.