terça-feira, julho 19

Poeta


É poeta, e mesmo em conversa não resiste a declamar. Agita os braços, carrega as feições, dá punhadas no ar a agredir um inimigo invisível. Comédia que sempre se lhe perdoa.
Agora, numa atrapalhação acompanhada de gestos espásticos, retira do bolso do casaco uns papéis, finge que procura, finge que lê, finge que hesita, finge que os guarda, finge que se aborrece e o aborrecemos, até que finalmente, sombrio, resmungando, anuncia:
- Fiz isto ontem. A ver o que vocês acham.
"Deixou-me a alegria,
Lentas e amargas são as horas…"
O poema é longo, sobre coisas perdidas, dores passadas, e a voz, ressoando nos graves com ecos de Hamlet, sublinha o que devem ser as passagens de maior tensão.
Quando termina fazemos uns murmúrios de apreço, mas logo de seguida T., insensível, anuncia que vai ser transferido para Macau.
O poeta ensombra, baixa os olhos, reage amuado quando lhe pergunto as razões da sua antipatia pela lírica de Bocage. Depois, fingindo que lhe custa o levantar-se, pigarreia, mete os papéis no bolso, despede-se com um melancólico "Vou andando".

Sabemo-lo desde Pessoa: "O poeta é um fingidor".