terça-feira, junho 1

Almoços e amizades



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Quem é que ele não conheceu ou não conhece? Com quem não terá ainda almoçado? Infantil e barulhento, o seu modo de exagerar não impressiona, mas pergunta-se a gente que finalidade terão aqueles arrotos de postas de pescada. Proveito não lhe vem, antes pelo contrário, pois no segundo acto já o interlocutor fica de pé atrás. Resta ouvi-lo e gozar o espectáculo.
- Foi o que eu disse ao Zé. O José Saramago. Estávamos com a Pilar em Alfama, não me lembro bem, uma tasca muito gira.
Umas vezes começa assim e segue-se um quarto de hora de intimidades, com o detalhe de que Pilar detesta a carne de porco e o Nobel tem um fraco pelo bacalhau à Brás. Verdade ou ficção, não vem ao caso, interessante é vê-lo saltar daí para os seus variados contactos.
- Costa Gomes. Vocês sabem. O presidente. Grande homem.
Gesticula, desfiando as intrigas e os casos, vemo-lo de súbito transformado no marechal, erguendo os braços na saudação às massas, sussurrando-lhe um recado político, recebendo-o em Belém.
- Não sei se sabem, mas o palácio tem uma cozinha... Come-se lá muito bem.
A malícia pode mais, não resisto: - Também almoçou com o Spínola.
- Desculpe, mas com o Spínola não almocei. É verdade que me tinha convidado, mas foi quando houve aquela coisa com os comandos, não chegámos a almoçar.
- Com o Mário Soares?
- Dezenas de vezes. Mas o Mário almoça com toda a gente. Bom rapaz. Bom garfo. Conhecemo-nos em Paris em 70. Talvez 71. Acho que é isso, mas não garanto, sempre fui fraco em datas. Em caras não, mas em datas... Agora de quem gosto muito, vocês vão-se rir, é do Manoel d'Oliveira. Ando sempre a gozar com ele por causa do nome. Com ó! Não lembra ao Diabo. Fomos íntimos e antigamente ia muito a casa dele, na Foz, mas está a ficar um bocadito...
Com um abanar da mão demonstra a fragilidade do cineasta centenário, e continua com o Cardoso Pires, "O Zé Cardoso Pires! O Zé Cardoso Pires! Estupendo personagem!"; a Sofia, "Ah! A Sofia! Ela escrevia com ph, Sophia! Grande mulher! Grande poetisa! Daquilo já não há." – e confidencial: - Chegámos a ter um caso. Mais flirt que outra coisa. Romantismo. Entre a minha papelada devo ter um soneto que me dedicou, mas sou um desorganizado. O mais novo, o João, prometeu que dava uma volta, que o encontrava, mas isto é rapaziada nova, estão-se nas tintas.
Suspira, tira uma fumaça da cigarrilha, cheira o uísque, bebe, estala a língua a saborear.
- Com a Natália foi mais sério. Ela tinha aquele bar na Graça, o Botequim, e continuava a ser deputada...

As histórias são sempre as mesmas, o seu papel nelas sempre o mais importante, mas a atenção vai esmorecendo, o sentido crítico vem ao de cima. Envelheceu, continua no mundo que em rapaz se criou e, escondido na província, inventando importâncias, conta os sonhos como se fossem a vida. Tudo se lhe perdoa.