domingo, dezembro 28

Dr. Armando Sanches de Morais Pimentel (1913-2008)

O mais antigo e um dos melhores, se não o melhor dos meus amigos, faleceu ontem.

A primeira recordação que dele guardo data dos seis ou sete anos, e a partir daí, numa longa enfiada de vivências, foi companheiro, guia, mentor, sempre cuidadoso em nunca me tratar como criança ou adolescente, mas seu igual. Que em muitos aspectos o éramos. Ambos fanáticos da leitura e do cinema, do amor da história, do interesse pela política, dele cedo aprendi que na vida e na sociedade é escassa a nitidez do preto e do branco, do bem e do mal.

Jurista sabedor e experiente, com outras e bem fundadas perspectivas, ele via mais longe e sabia que pouco se consegue sem compromissos, enquanto que o jovem rebelde que eu era drasticamente os recusava.

Permitiu-me, talvez mais que a ninguém, partilhar da sua intimidade, do segredo dos seus amores. Depois fui-me a correr mundo, ele teve de ficar, mas isso só fisicamente nos separou. A amizade, essa manteve-se numa correspondência que daria volumes e ele, avesso a deitar fora, deve ter arquivado entre a sua imensa papelada. Ao contrário do seu hábito, das muitas dezenas de cartas que me escreveu guardo apenas duas: uma a contar as circunstâncias do seu casamento, a outra dizendo da pena sofrida com a morte da mãe.

Cronista de prosa elegante, devo-lhe o ter-me encorajado a escrever e, no quinzenário Torre de Moncorvo, que nos anos cinquenta ajudou a fundar, ter publicado os meus primeiros contos.

O mais, desde então, é uma longa e excepcional história que valeria a pena contar, mas não é para a praça pública.


O uso manda que dos mortos se enalteçam as virtudes e passem por alto os defeitos, mas na minha amizade por Armando Sanches de Morais Pimentel não cabe a hipocrisia. Seria diminuí-lo dizê-lo superior ou único. Ninguém o é. Como todos nós teve qualidades, e como todos nós errou. Mas em muito se distinguiu do comum: pela inteligência, pelo conhecimento da literatura, pelo saber jurídico, pela clareza do raciocínio, a gentileza, a modéstia. Duas vezes o convidaram para ministro da Justiça e de ambas recusou, ciente de que a integridade é pouco compatível com os jogos e os interesses da política.

Advogado por dever familiar, o seu gosto seria a engenharia mecânica, mas essa vocação exigia sacrifícios e separações que não queria nem se podia permitir. E assim, nas horas vagas fez-se apaixonadamente ferreiro. Com oficina completa, saber, e arte de que deixa provas.

Vai hoje a enterrar e com ele se enterra também muito de mim.