terça-feira, março 23

Um almoço no Ritz

 

Nos meus anos de tropa Madame Blanche, num primeiro andar da Rua da Glória, distin­guia-se entre os bordéis de Lisboa pelo grande número de mulheres, o ambiente e, para­doxalmente, o decoro. Tenho memória de um desmedido salão cheio de sofás e banquetas, onde raparigas de ar recatado, sozinhas ou conversando em pequenos grupos, aguardavam o bel-prazer dos clien­tes. Havia algumas mesas, alguns móveis aparatosos, uns quan­tos quadros discretamente eróticos e pesadas cortinas que, mesmo nos dias soalheiros, mantinham uma agradável penumbra.  

Para assegurar uma certa selecção da clientela, porque os preços não eram excessivos, a própria madame Blanche sentava-se a uma escrivaninha junto da porta e, espreitando pelo ralo, decidia se o aspecto do freguês lhe inspirava confiança.

Os recusados tinham o mau costume de por despeito urinar na escada, cuja madeira, impregnada ao longo dos anos de mijo e creolina, acabara por dar à entrada um odor estran­ho, mas de forma nenhuma repelente, antes agradavelmente familiar.

A partir das duas da tarde e noite fora Madame Blanche não era apenas bordel, mas local de encontro, de cavaqueira, com clientes assíduos que liam o jornal, tratavam negócios e confiavam às raparigas e à patroa os detalhes dos seus contratempos e achaques.

De vez em quando, feita a escol­ha com um gracejo ou um sorriso, um deles subia ao andar de cima. Alguns bebiam mais um café, mais uma cerveja, e espera­vam ainda, enquanto outros rezingavam se a sua favorita não estava ou se ela, "infiel", lhes não guardava a primazia e ia com outros.

Travavam-se amizades, trocavam-se confidências, ria a gente com as anedotas, e desde que se obedecesse às duas regras principais da casa - madame Blanche não queria "porca­rias" no salão, nem admitia bebedeiras - passavam-se ali momentos agradáveis, tinha-se a ideia de pertencer a um clube que, além de acolhedor, oferecia a vantagem de não exigir entrada nem impor a obrigação do "consumo".

Infelizmente, duas vezes por mês, quando um famoso navio de passageiros italiano da linha da América (cujo naufrágio, anos mais mais tarde, viria a ser uma das grandes tragédias marítimas do nosso tempo) tocava em Lisboa, madame Blanche fechava a porta à freguesia habitual.

O estabelecimento era então reservado  para os oficiais do dito paquete que, a acreditar nos boatos, aí faziam grandiosas orgias, onde, dizia-se. também os passagei­ros, tanto homens como mulheres, tomavam parte.

Madame Blanche preferiria que as coisas se passassem doutro modo, porque no seu próprio dizer os italianos eram "uns porcos", além de que no dia seguinte, exaustas, as raparigas "não valiam um pataco." Mas como esses dois dias lhe rendiam mais que o resto do mês, tinha de recusar os clientes certos que, ao dar com a porta fechada, caminhavam morosamente para o Rossio em busca de um café e de alívio para o seu estado de almas penadas.

Uma tarde, ao subir a escada, descortinei no patamar um rapaz a espreitar curvado contra a porta.

- Fechada - disse ele irritado. - Os sacanas têm outra vez a casa por conta e estão no banzé. Olha aí.

Curvei-me também, mas só vi o vestíbulo vazio. Ouviam-se sons longínquos de música e risos, uma gritaria alegre de festa.

- Então? - perguntou ele.

- Não se vê nada.

- Pois eu ainda agora mesmo vi passar a Simone em pêlo, com um chicote na mão, montada num sujeito que ia de quatro patas aos guinchos e aos coices, a fingir de cavalo.

Ao mesmo tempo que falava voltou a espreitar, mas como de facto também não via mais nada, resolveu descer as escadas comigo e acompanhar-me ao café.

Na rua estendeu-me a mão, disse que se chamava Carlos Palma e era miliciano em Caçadores 5. Como era domingo e ambos estávamos livres, con­versámos durante o resto da tarde e acabámos por jantar jun­tos.

Filho de lavradores de Alcobaça, gente abastada em poma­res e vinhas, o Palma era jovem demais para ter história, mas falava pelos cotovelos.

Do muito que contou recordo o caso de um tio que, em moldes clássicos, se tinha apaixonado por uma mulher da má vida que, pouco a pouco, lhe fora "comendo" os bens e o deixara tão depenado que o pobre vivia da caridade da família. O exemplo, disse o Palma, era assustador bastante para que jamais deixasse que lhe viesse a acontecer semelhante coisa, mas o vício com certeza vinha de família.

- Conheces a Rosa? - perguntou ele inesperadamente. - Uma alta, de cabelos castanhos, olhos castanhos.

Desconhecia e ele estranhou, porque na Madame Blanche era das raparigas que dava mais na vista. Pois desde a primei­ra vez que tinha ido com ela para a cama, não aguentava passar dia sem a visitar. E se não estava, ou ia com outro, parecia-lhe que dava em doido. Por isso andava com ideias de a pôr por conta. Era só ela querer e a patroa deix­ar, porque o ordenado junto à mesada que lhe davam os pais, bastava à larga para dois.

- Palavra que a não conheces? Nunca foste com ela?

Repeti que não, irritado com aquela insistência, e ele abraçou-me aliviado, dizendo que não tinha dúvida que ficáva­mos amigos. Se um dia calhasse apanhar na rua um dos gajos com quem ela ia, não lhe deixava um osso inteiro. E não duvi­dei, porque o Palma, além de forte, tinha nos olhos um brilho de loucura.      

    

Voltámo-nos a ver anos depois em Paris, onde passara a morar. A nossa camaradagem tinha-se mantido, mas pouco mais que superficial, encontros fortuitos, uma carta de vez em quando. Para ele a vida militar parecia ter sido o momento alto da sua vida, e se se referia às amizades então travadas descaía numa linguagem melada e romântica, cheia de "gajos porreiros", "belas farras", "noites de pândega."

- Vamos almoçar. Pago eu.

Olhei-o com surpresa e alguma suspeita, porque não o tinha por mãos-largas, nem me lembrava que jamais me tivesse convidado.

Tomámos um táxi. Absorto nos meus pensamentos, só já dentro do restaurante me dei conta do luxo do estabelecimento para onde me levara e onde, a avaliar pelos rapapés e cortesi­as, era cliente estimado.

O chefe de mesa, ligeiramente de­bruçado para apresentar o menu, sussurrava recomendações sobre os diferentes pratos, tratando-o por monsieur Palmà, sorrindo-lhe com a deferência que se guarda para o cliente magnânimo nos gastos e nas gorjetas. Monsieur Palmà!

- Também queres lagosta? Então vamos os dois neste Sauté de homard aux deux poivres et au gingembre. E de vinho?

O sommelier aproximou-se para recomendar o Pommard 61, ele aprovou, eu aceitei com um encolher de ombros, desconfian­do que o almoço não havia de terminar sem que se esclarecesse o fito de tanta e tão inesperada generosidade. Mas por enquan­to íamos debicando amuse-gueules, sorvendo goles de uma mistura de sumos exóticos, licores e champanhe, com um ligeiro odor a sabonete e a consistência de gemada.

O Palma recostou-se na cadeira e sorriu, tentando afastar o meu humor sombrio:

- Nós aqui na bela Paris, o sol a bril­har, boa mesa, boa pinga, e o camarada do 7 de Infantaria com cara de enterro! Arriba, homem! Desabafa!

Eu tinha nesse dia razões de sobra para ideias tristes, mas avesso a interrogatórios, e sem ter com ele a confiança que dispõe a confidências, pareceu-me mais seguro levar a conversa para o seu tema favorito. Falámos da tropa. E de Lisboa. E de Madame Blanche.

- Ah! A Madame Blanche! Não é nada do que foi, sabes. A madame trespas­sou o negócio. A casa está rasca, vai lá quem quer. Entram marujos, entram caixeiros... Ainda te lembras da Rosa?

Mais para lhe dar motivo de continuar do que por espírito de contradição, respondi que me não lembrava.

- Nem daquele caso do meu tio Miguel? Que por causa da amante quase acabou a pedir esmola?

- Vagamente.

Contou tudo outra vez, e que quando por fim pusera a Rosa por conta, também ela o depenara em dois tempos. Isso, porém, eram águas passadas. Com a herança de uma avó recompusera as finanças, tinha escapado aos pais e a Alcobaça, estava agora nuns negócios que, se tudo corresse bem, o tornariam milionário.

- A nous deux, Paris!- exclamou ele entusiasmado.

Não perguntei que negócios eram, e ele também não mo contou, distraído talvez pelo chefe de mesa que voltara para perguntar se, como de costume, monsieur Palmà desejava que com o café fosse servido o Baron Otard 1929. O Palma disse Oui, e pediu charu­tos.

- Mesmo assim tenho boas recordações da Rosa. Mau caráct­er, mas corpo excepcional. E então na cama, meu velho!... De se lhe tirar o chapéu. Absolutamente. Se bem que a rapariga que tenho agora, a Colette, não lhe fique atrás. Excepcional! E uma francesa sempre é outra coisa. Tem mais cachet, não achas?

Concordei, ao mesmo tempo que me ocupava a acender o enorme Monte-Cristo que ele me aconselhara. Com o conhaque brindámos ao nosso reencontro, à felicidade mútua e, a seu pedido, brindá­mos ainda para que no mundo se não acabasse a raça das belas mulheres.

Numa transição brusca quis ele saber como iam os meus negócios, e quando lhe respondi que iam mal assombrou-se.

- Então vão mal? 

Confirmei que assim era. Por mais que tentasse, há dois anos que a roda da minha fortuna não fazia senão desan­dar, tudo o que eu empreendia dava em fracasso.

- Isso é o diabo - disse ele, num tom pesaroso demais para ser sincero. - Mas talvez eu te possa dar uma oportunid­ade. Tenho aí num armazém um lote de botas de pára-quedistas. Cinco mil pares. Fabrico alemão e ainda na embalagem de ori­gem. Lona de primeira. Boas para o deserto ou para a África. Uma pechincha a nove dólares o par. Que te parece?

Tive que o desiludir, porque nem o calçado era negócio que eu entendesse, nem dispunha de capital.

- Então nada feito, meu caro! - gargalhou ele. - Já que não me compras o raio das botas, ficas-me a dever um almoço. Eu daqui vou-me meter na cama com a Colette.

Na rua ainda gracejou que não me esquecesse de dar reco­mendações suas às belas holandesas:

- Apareço um dia por lá e levo-as todas a eito! 

 

Do terraço do hotel a vista sobre o lago de Genebra era a que se espera de um postal suísso e por um instante esqueci a mul­tidão sentada à minha volta, corri os olhos pela verdura das encostas, pelas montan­has ainda com neve nos cumes, os meand­ros do rio, a cidade banhada de sol.

O pigarro do Palma tirou-me da contemplação e, ao encará-lo, ouvi-o dizer num desnecessário sussurro:

- Não tarda. Agora mesmo estava a falar com o porteiro.

E de novo, como a temer que me tivesse equivocado, ou por qualquer razão não tivesse sido sincero, repetiu que estranha­va que eu não conhecesse o Garcia:

- É o Garcia! O Garcia das minas de cobre, aquele caso de que no ano passado se falou tanto nos jornais.

O homem veio para nós, sorridente, de fato branco, camisa verde e gravata a condizer, cinquentão gorducho, as ondas do cabelo domadas pela brilhantina. Palma murmurou as apresen­tações. Apertámo-nos as mãos, ele sentou-se vagarosamente na cadeira, cuidadoso no alinhar do vinco das calças, recusando beber connosco.

- Obrigado, não tomo nada. E desculpem, mas tenho pouco tempo. Estou aí em negociações com os sobrinhos do sheik de Qatar, que vieram com a comitiva. Alugaram um andar inteiro.

Um grupo de árabes de albornozes brancos passeava na esplanada de cá para lá, alguns em conversa animada, outros escutando com deferência e movendo nervosamente entre os dedos rosários de âmbar. Ele acenou-lhes, mas nenhum correspondeu.

- É aquela mania dos óculos muito escuros. Não enxergam nada. Além disso estão meio incógnitos. Coisas de armas, de petróleos... Temos encontro marcado com o ministro para hoje à tarde.

Porque me não mostrava impressionado, ou simples antipatia, certo é que o homem praticamente me virou as costas e, ignorando a minha presença, começou com o Palma uma longa conversa de recordações e esperanças, de planos para quando lhe sobrasse o tempo. Maus negócios que tinham acabado bem, negócios fracos que a sorte tornara rendosos, esquemas com que um dia, havendo accionistas, ele se propunha realizar uma fortuna igual à de Crésus. Ou à de Onassis, o seu exemplo favorito.

Na minha opinião o Palma tinha feito asneira em me cha­mar. Eu conhecia o género de conversa e o tipo de homem de negócios que vive de expedientes, envolto num vocabulário de mistério e névoas como o da feitiçaria. "Se o nosso grupo estiver de acordo... Quando os financeiros chegarem aí..."

Não há grupo, há escritórios nas salas de trás de prédios caducos, com o aluguer em atraso, uma mesa e duas cadeiras, máquinas poeirentas, uma aparência de arquivo. Telefones desarranjados por falta de pagamento. Tramóias. Imposturas. E os financeiros não estiveram, não estão, não vão estar. Porque existem apenas nos seus sonhos, no desejo do golpe que torne sólida a corda bamba em que vivem. "Vamos lá ver se desta vez dá certo. Da outra não deu, mas esteve por um fio."

Assim se arrastam, desvairados, fazendo promessas impossíveis, produzindo docu­mentos onde sempre falta um detalhe essencial. Ou é a data que não corresponde, ou a assinatura que ninguém legalizou, o carimbo tão mal falsificado que constrange. Vigaristas desses. Se estão na mó de cima nenhum gasto lhes parece excessivo, nenhuma largueza os assusta, porque é assim que compensam os momentos de terror quando os lesados os defrontam, ou a cadeia se lhes torna uma perspectiva real.

O Garcia recordou como por acaso a minha existência e quis saber se eu vinha muitas vezes a Genbra.

- De longe a longe.

- Genebra é o centro, é onde está o dinheiro! - exclamou ele. - E o dinheiro é o poder! Aqui é que se decide tudo.

Eu disse que sim, por desfastio, distraído com o repuxo do lago, vagamente descontente com as voltas da minha vida e irritado por ter aceite o convite do Palma.

Desde o encontro em Paris não nos víamos há mais de um ano e ele tinha telefonado uma noite, cheio de urgência, dizendo que me apressasse para Genebra onde iríamos encontrar o famoso Garcia, o homem que tinha entrada junto dos poderosos. O Garcia, de quem uma simples palavra de recomen­dação era o mesmo que meio caminho andado para se chegar a rico. Inexperiente e algo ingénuo, no dia seguinte tomei o primeiro avião.

O homem dos famosos negócios decepcionava. Na aparência, no esta­pafúrdio do traje, na fala e nos maneiris­mos, era vigarista de quinta categoria, parecia-me mais capaz de roubar uma anciã numa viela, do que ter cabeça bastante para inventar um golpe ou defrontar um perigo. A sua fama talvez existisse apenas na imaginação do Palma.

Julgando que eu não tivesse compreendido, ou para melhor me convencer, Garcia repetiu que era em Genebra que os negócios do mundo se decidiam.

- Porque é aqui que está o dinheiro - retorqui, cansado demais para disfarçar a ironia.

- Exactamente.

A minha resposta deve tê-lo indisposto, pois logo em seguida se levantou e, esticando de novo os vincos das calças, anunciou que sentia, mas o secretário estava a acenar que o sheik o esperava.

- Vocês desculpem, mas tenho de ir embora. A ver se doutra vez nos encontramos com mais tempo e conseguimos arran­jar alguma coisa.

Depois de um aperto de mão flácido vimo-lo caminhar em direcção à entrada do hotel, cumprimentando à esquerda e à direita, parando junto dalgumas mesas para um gracejo, uma troca de palavras.

- Pena que não se tenha podido começar nada, porque com uma ajuda dele, uma apresentação... O gajo conhece meio mundo. Não acreditas, mas ele é mesmo importante - suspirou o Palma.

- Importante uma fava.

Palma olhou-me constrangido, perguntou se eu queria mais café, ou uma cerveja, uísque. Eu não queria coisa nenhuma. Estava a deitar contas à vida, indeciso entre se valia a pena correr para apanhar o avião da uma, ou flanar pela cidade e regressar a casa no das sete.

- E agora? - perguntou ele.

- Agora nada. Tu voltas para Paris, eu volto para Amster­dam.

Ocorreu-me ainda fazer um remoque sobre o dinheiro gasto e o tempo perdido, mas calei-me, ao fim e ao cabo estava ali de livre vontade, talvez mais iludido pela minha própria ingenuidade do que pelas incitações dele.

- O diabo é que tenho um problema. E sério.

Olhei-o preocupado, porque o tom não admitia dúvidas.

- Que problema?

         

A sua sorte também desandara. Gasta a herança, perdidas as amantes - detalhes que eu ignorava - tinha posto no encontro com o Garcia uma esperança desmedida: arranjar ali de imediato com ele e comigo um negócio que o salvasse. Falhada a coisa, não tinha alternativa e em Paris estava "queimado". Dormia por favor num quarto. Nem sequer lhe sobrara dinheiro para comprar bilhete de ida-e-volta. Retornar a Alcobaça sem vintém, com o rabo entre as pernas? Não, muito obrigado. Mais depressa se atiraria ao lago.

Como não tinha outro modo de o ajudar, propus dar-lhe o dinheiro que me sobrava e não era muito, mas suficiente para uma segunda classe no comboio para Paris.

Fomos a caminho da estação. A cavaquear disto e daquilo, necessitados de palavras que cobrissem os nossos pensamentos e exorcisassem os nossos medos.

- Lembras-te daquele belo almoço?

- Esplêndido almoço.

- Bons tempos, hein?

- Bons tempos.

- Belas farras na Madame Blanche também, hein? Grandes noites de pând­ega!

- É verdade - e dizendo isto puxei-o mais para dentro do passeio, porque às vezes cambaleava como bêbado e os autocar­ros quase o roçavam. Na estação despedimo-nos com fortes abraços e votos de felicidade. Assim que as coisas corressem bem comíamos outro grande almoço.

- Prometido?

- Prometido.

 

No táxi, a caminho do aeroporto, e depois no avião, ao rememo­rar os acontecimentos do dia dei-me conta de como é verdade que, em tempos difíceis, a solidariedade esmorece. Os meus problemas eram demasiado grandes para que me preocupassem as aflições alheias, e ao virar-lhe as costas na estação, o Palma, julgava eu, desaparecera de modo definitivo da minha vida.

Mas, como ele contaria depois, precisamente no momento em que nos separámos a sorte decidira bater-lhe à porta.

Tinha esquecido a mala na recepção do hotel e ao voltar para buscá-la encon­trara de novo o Garcia, mas um Garcia descomposto e exausto, a gritar-lhe enraivecido:

- Onde diabos é que você se meteu!

- Fui para a estação e o caso é que esqueci aqui a ma­la...

- Qual mala, qual estação! Vamos ao sheik, homem! O sheik quer as botas!

- Mas eu já não as tenho. Empenhei-as.

- Desempenham-se!

 

O chefe de mesa do Ritz curva-se junto de monsieur Palmà para lhe entregar o menu, mas ele, entusiasmado com a narrativa, a sua mão a apertar-me o braço, fá-lo esperar:

- É ou não é o que se chama sorte?

- De facto é - concordo eu.

- E desde então tem sido sempre ao para cima! Nas Arábi­as, tudo quanto é soldado calça botas minhas. Queres lagosta como da outra vez?

Digo que sim, invejoso de tanta prosperidade, e oiço-o encomendar de novo o Sauté de homard aux deux poivres et au gingembre, acom­panhado agora de um Puligny-Montrachet 63.

- Sabes uma coisa que me dá mesmo pena? E às vezes até sonho? - continua ele, ao mesmo tempo que saboreia o kir. - É não ter vinte anos. E não estar em Lisboa. A esta hora, meu velho, ninguém me segurava! Fazia como os italianos, fechava-me dois dias na Madame Blanche!

in Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia.