domingo, fevereiro 14

Judas e cornudos

Semanas atrás, um almoço domingueiro, oito à mesa, não lhe venham com essa treta de que é proibido, não se pode, é perigoso, que se deve dar o exemplo, etc. Pois deve, está muito bem, mas em minha casa mando eu. Os convivas entreolham-se, uns sorriem, os que estão ali pela primeira vez admiram os caixotões do tecto, coisa antiga, as salvas de prata, o faqueiro Christofle, ninguém vai contradizer o Albuquerque, que mantém o vozeirão do almirante que foi, e o modo autoritário de quem se habituou a mandar e ser obedecido sem discussão.

Fora isso é um privilégio o convite para aqueles almoços quinzenais, tanto pela qualidade do que neles se come e bebe, como pelo jeito que dá pertencer à roda do almirante, pois desde que deixou a Marinha é ele na vila, no concelho e até na província, a modos de um vice-rei dos poderes que, na longínqua Lisboa – longínqua em sentido figurado, evidentemente - têm na mão os cordelinhos das verbas, das melhorias, e ainda daqueles favores que são o eficiente lubrificante das relações proveitosas.

São almoços de homens, e deve haver mulheres na cozinha, mas os hóspedes só vêem a governanta que à chegada lhes dá as boas-vindas, e as duas raparigas que servem à mesa com uma timidez de bichos-do-mato.

É mandamento do almirante que a sopa, sempre de peixe, se coma em silêncio, como também é dele o privilégio de recomeçar a conversa, surpreendendo-os desta vez com uma inesperada interrogação:

- Então parece que desde o Natal já há mais quatro?

Os convivas entreolharam-se, perplexos, cada um a suspeitar ser ele o único fora do segredo, mas ao dar-se conta que o não compreendiam, o próprio Albuquerque pôs fim à charada:

- Mais quatro cornudos, pelo que me vieram contar.

Uns sorriram, outros encolheram os ombros, se por acaso assim era não teria a ver com os que ali estavam, pois nenhum parecia acusar o toque. Então, num modo pausado e com a perícia de um mestre-de-cerimónias que sabe escolher o momento de cativar o interesse do público, o anfitrião anunciou que não se tratava de cornudos num matrimónio, mas quatro judas que oficialmente ainda estavam no partido, mas já tinham passado para "os outros", uma traição que iriam pagar caro.

Alguns dos presentes contaram depois que naquele momento, salvo o devido respeito, o ambiente parecia o da Última Ceia, tanto mais que quase todos sabiam que os judas estavam ali. Mas o almirante mostrou que nada esquecera da estratégia: na despedida a todos beijou na face, dizendo-lhes que voltassem.