domingo, julho 12

Os queixumes do pianista


Conta ele e é verdade, são pequenos nadas, às vezes uma palavra, um gesto, o tom de uma resposta, o modo de olhar, num casal pouco é preciso para que comece a discórdia, e esse pouco pode ir insensivelmente ganhando peso até que chega o ponto em que, tal um rastilho, às vezes arde depressa, noutras parece que se apaga, mas deixando a ameaça que, embora invisível, nele o fogo pode continuar a arder e se por acaso rebenta não se lhe prevêem as consequências.
Ambos gostam de música e se bem que a preferência do Renato vá para a clássica e Lena  continue fanática dos Beatles e dos Rolling Stones, cada um sempre aceitou o gosto do outro, ele acompanhou-a muitas vezes a festivais pop, Lena nunca se negou a ir a um concerto de Schoenberg ou Shostakovich, mesmo sabendo que lhe custaria esconder os bocejos e manter-se acordada.
Por mal, agora que se aproximam da velhice, tanto os festivais como os concertos são memórias cada vez mais longínquas, e ambos se dão conta de um começo de surdez, pelo que mesmo em casa raramente ouvem música. Quando o fazem é separados, e pouco a pouco foram deixando de discutir gostos ou trocar impressões, talvez também porque a idade lhes aumentou a impaciência e há horas em que um nada dispara a irritação.
Embora saudável e bem disposta, Renato logo de início notou que havia ocasiões em que de repente a esposa se queixava. Ora era uma dor de cabeça ou pressão no peito, pontada no ventre, um "ardeúme" nos joelhos, náuseas, falta de ar... Zangava-se se ele insistia que fosse ao médico, zangava-se também quando lhe perguntava se a dor tinha passado, e por fim aprendera a mostrar-se indiferente.
Estava porém longe de imaginar o desfecho de uma conversa durante o almoço de domingo passado, quando tinham gracejado que não eram tão velhos como Mick Jagger e ela recordou ter lido que Vladimir Horowitz, o célebre pianista, quase só se alimentava de linguado cozido e tinha chegado aos oitenta e seis.
Nesse momento devia ter posto travão à língua, mas escapou-se-lhe que Horowitz, um formidável hipocondríaco, durante trinta e tal anos tinha tido um médico pessoal que o examinava no quarto logo ao acordar, e este uma manhã, farto das lamúrias de quem gozava uma saúde de ferro, disse-lhe com azedume que talvez à hora da morte deixasse de se queixar, o que logo ali lhe valeu ser posto no olho da rua.
- Isso é uma indirecta? – perguntou Lena.
Como em vez de se desculpar ele não se conteve e desatou a rir, estão de relações cortadas.