domingo, julho 5

O que é ter sorte


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 - Quarenta e dois é a força da vida.
- A mocidade. Foi uma grande pena.
- Uma tragédia.
Ouvia as conversas mal dando conta, ainda absorta no cerimonial do enterro e a recordação absurda de incidentes comezinhos, cenas estúpidas. Incompreensível lembrar-se agora que no dia do acidente ele teimasse em vestir o polo que trouxera da América; que tinha de pagar a conta do telefone; que o Justino não viera compor o beiral.
- E bom rapaz.
- Muito bom rapaz.
- Nova e bonita como é, com o que herdou do pai e o que lhe vem agora, a Helena…
Afastou-se antes que dessem conta de que os ouvia. Sim, era rica. Bonita? Com o véu não veriam que tinha sorrido com o cumprimento.
- Espera-se pelos carros? – perguntou alguém num sussurro.
Teve uma sensação desagradável quando um senhor de idade a agarrou pelo braço para lhe contar que nos anos sessenta, em Luanda, comprara “ao seu papá que Deus tenha um Chevrolet,” e com esse carro começara a sua prosperidade. “Graças ao seu papá, querida menina! Um santo!”
Enojavam-na aqueles dedos, nuns apertos inquietos que tanto podiam ser emoção como luxúria. Com um gesto livrou-se dele, olhos baixos, contrição fingida, achando graça à sogra que costumava dizer “ Eu cá não acredito em Deus nem no Diabo, só no dinheiro. Nosso Senhor é uma boa treta!”, e caminhava de rosário na mão amparada ao padre.
- Linda viúva.
- Boas pernas e dinheiro como chuva.
Incrível. Nem sequer reparavam que o burburinho não bastava para abafar as vozes.
A meio da tarde tinham telefonado da Polícia, um funcionário que dizia “xim senora”. Deu um retoque às sobrancelhas e telefonou aos sogros que o Manuel sofrera um acidente.
Tinha sido bizarro o dar-se conta que nunca entrara num hospital. O ar abafado fizera-lhe lembrar o colégio, as freiras, o cheiro de sopa e desinfectante. Uma enfermeira sussurrou-lhe  que ainda estavam a operá-lo e ela sentou-se no corredor, olhando em torno, perplexa de que o dia acabasse em tragédia.
- Aqui não se pode fumar.
A abrir o maço não tinha dado pelo rapaz, a cadeira de rodas não fazia ruído.
- Naquela salinha pode – disse ele, sorrindo.
Sorriu também e guardou o maço na  bolsa.
- Com certeza desastre.
Acenou que sim e o rapaz fez rodar a cadeira, ficou diante dela.
- Estou cá há dois meses mas tive sorte, sabe? Só fiquei paralítico da cinta pra baixo. Mas se quer ver o que é azar vá àquele quarto, está ali um sem pernas e só com metade dum braço. Na cama parece um pacotinho.
O chofer fechou a porta e ela tirou o véu, acendeu o cigarro.