Faz o que pode para travar os sentimentos e perder o medo, ir
por diante com a liberdade daquele que não tem desculpas a oferecer nem contas
a dar. Mas de coração preso a tantas dores e recordações que às vezes se pergunta
se foi assim ou é a fantasia a trocar-lhe as voltas, a alindar os papéis que representou,
os que o obrigaram a aceitar, desde o princípio incapaz de ver claro e descobrir
no íntimo o que é verdade ou miragem, os seus olhos cúmplices no engano, como
se ele próprio não fosse único, mas um coro de pecados e más intenções.
Nunca perdeu a vontade de endireitar, nem encolhe os ombros
dizendo deixa correr, mas sabe por demais que sempre haverá os capazes de duma
ou doutra maneira darem um jeito, entortando para o lado donde lhes vem benefício,
fazendo alegres manguitos ao rebanho, que esse de pouco precisa, até com menos
se contenta, sempre à espera do milagre e crente nas tretas.
Pobre rebanho, é como se desde os afonsinos lhe tenham rogado
praga para que fique criança dócil e vá aguentando, só explodindo de verdade
dentro das quatro paredes, fazendo pagar as favas aos que não devem, mas lhe
estão à mão e têm menos força.
Nunca lhe quis pertencer nem entrar nele, cedo aprendeu que é
deixá-lo passar a caminho da tosquia ou do matadouro, porque esperando o
preciso a poeira assenta e não se lhe ouvem os chocalhos nem o triste balir.
Pode parecer o falar de um estranho, mas é a si próprio que
se vê, são suas as feridas, é sua a dor. Ao contrário dos sortudos, ricos e bem
nascidos, a ele não deram escolha, abriram a porta e atiraram-no para o mundo sem
amparo, o inocente a sonhar que iria sempre por caminho largo, mas logo depois,
desnorteado, a ver-se por atalhos e ribanceiras, hesitando nas encruzilhadas, numa
e noutra altura caindo nos pegos donde sai o chamamento que confunde e leva à
perdição.
Histórias? Mas que outra coisa é a vida de cada um, a dele, a
tua, se não uma história mal contada, tosca no arranjo das peripécias,
primitiva no desenho dos personagens, inconsequente nas cenas e nas emoções?
No princípio era o Verbo, e ignorante do Evangelho tomara
aquilo à letra, as palavras seriam a sua alegria e redenção. Depois uma vida
inteira a procurar nelas a chave do mistério, mas sempre derrotado na busca,
sentindo o ritmo, a harmonia, ouvindo a música, perguntando-se que força o
impedia de descobrir, que maldade travava o seu desejo, que poder era aquele
que lhe deixava vislumbrar a beleza, para logo lhe cegar o entendimento.