quarta-feira, janeiro 30

Avôs e netos


Para todos é diferente, mas falo por mim, sei do que falo: o que mais pesa no que emigra não é a saudade, a receosa excitação do desconhecido, o largar de amarras.
O que mais pesa nele, e sentirá como quem se afoga, é o medo, o estranho medo que mais tarde, quando, por vezes, se julga a salvo e protegido, inesperadamente o toma: compreende mal a língua ou desconhece-a de todo, lê nos olhares e nos modos o que preferiria não descobrir, sente que involuntariamente se dobra, se esconde, torna pequeno, chora lágrimas que ficam dentro.
Tem horas de revolta, mas só mais tarde saberá que essas também lhas causa o medo, o medo em infindas versões: a de perder, de falhar, da vergonha, do desespero, da desigualdade, do insulto, do erro que lhe apontam e ele não compreende que cometeu, do modo que não tem, daquilo que dele esperam e não pode, não sabe dar.
Mudaram muito, e felizmente, os tempos. O António, o Miguel, o Fernando, a Isabel e a Georgina, que agora emigram, não o fazem como os avôs, de quem eu um dia escrevi:
" Vão a pé, como em todos os êxodos trágicos, morrem às dezenas nas águas do Bidassoa, entre a Espanha e a França; morrem de fome e de frio nas neves dos Pirinéus, onde alguns se metem sozinhos, na esperança de passar, outros abandonados pelos guias a quem tinha pago.
Aldeias inteiras esvaziam-se. Os homens partem noite escura, com medo das denúncias, alguns nem se despedindo dos familiares, levando na mão o pouco que lhes pertence. Às vezes em grupos de quinze, vinte, apalavrados com o engajador, no lado espanhol da fronteira são apanhados por um camião e, deitados no meio da carga, fazem a viagem até aos arredores de San Sebastián. Depois, a pé, atravessam os Pirinéus, e de novo um camião com fundo falso que os leva a Paris."
Paris! A segunda cidade de Portugal, mais de 600.000 portugueses entre os seus habitantes."
Esses jovens que aqui em Amsterdam encontro, vieram de avião ou de comboio, no carro de amigos, o seu futuro será outro, talvez menos duro, quiçá mais trágico, porque é maior e diferente a sua esperança.
Vejo-os e oiço-os no supermercado, nas lojas, nos cafés. Espio-os. Julgam-se a salvo e que ninguém lhes entende a língua.
"Olha prò filho da puta! Viste as mamas da gaja? Dás um empurrão ao velhote e ele espalha-se. Tanto pretinho, pá! Eu a julgar que estava na Holanda."
Não me dou a conhecer. Registo, não censuro. Os avôs não podiam, não sabiam falar assim, olhavam e calavam.
Os netos falam, ainda não sabem, julgam-se a salvo. Deus se compadeça na hora em que os tomar o medo.

terça-feira, janeiro 29

Nineteen Eighty-Four

Sou pouco ou nada de raridades bibliográficas, mas tenho certo carinho por este fac-simile do livro de George Orwell.
São duzentas e noventa páginas, umas dactilografadas outras manuscritas. Entre muitas outras coisas, recordam-me as dezenas de anos que escrevi assim e o trabalho infernal que eram as correcções.
(Clique)

segunda-feira, janeiro 28

O mesmo tempo, o tempo de sempre



 
 "De um ponto de vista social, a emigração portuguesa constitui a manifestação de uma forma de escravatura que subsiste ainda hoje. De um ponto de vista ético, a emigração portuguesa significa a negação constante do direito mais elementar da pessoa: o direito à vida no próprio país. De um ponto de vista político, a emigração portuguesa supõe a renúncia à revolta".
in Portugal, a flor e a foice -  Novembro de 1975 - inédito em Português.

domingo, janeiro 27

Analogias

(Clique)

Em conversa, entrevista, ou doutro modo, não lembro que jamais um colega português  tenha mencionado um dicionário analógico.
Que eu saiba, na nossa língua existe apenas um, o "Dicionário Analógico da Língua Portuguesa (Idéias Afins)", do brasileiro Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. Possuo a 2ª edição, a de 1983, que desde então muito me tem ajudado e ensinado, confirmando também o verso de Carlos Drummond de Andrade:
"Lutar com palavras
É a luta mais vã.
Entanto lutamos
Mal rompe a manhã."
O igualmente inestimável "Roget's International Thesaurus" ajuda-me desde 1977. Será que os colegas calam, não usam, desconhecem estes instrumentos? Ou não precisam de aprender?
 (Clique)

sexta-feira, janeiro 25

Princesas


Era casado com uma daquelas loiras de quem se diz mal: grosseira, espalhafatosa nos modos e na fala, banha a mais, pintura a mais, ouro a mais, saia a menos, cabeça zero.
O divórcio saiu caro, mas diz que de boa vontade teria pago o dobro, a liberdade é um grande bem.
Para segundas núpcias foi buscar uma ao Suriname. Pretinha, redonda nas formas, avultada no altar, o traseiro empinado das altas cavalarias, beiços de Louis Armstrong a cantar What a Wonderful World.
Durou pouco. A sujeita tinha gostos bizarros, passava o dia na cama a ver televisão e a queixar-se da estranha gente, do frio, da neve, do pouco calor do Verão, do escuro do Inverno. Fazia refeições de M&M's e Coca-Cola. Soltava livremente uns fumos que, da primeira vez que o notou, quase tinha telefonado à Companhia do Gaz, a alertar que havia fuga.
Com esta a separação calhou baratucha, porque ela não estava ao corrente do que podia sugar e, nas suas bandas, também o ditado diz Kinderhand is gauw gevuld, o que trocado em miúdos vale por: "mão de criança com pouco se enche".
A actual encontrou-a o ano passado, quando esteve de férias na Nigéria, descobrindo que, à semelhança do que garantem mais de 60% das raparigas do país, era princesa. Um pouco como os russos no tempo dos Czares, que quando tinham uma vaca se intitulavam príncipes.
Por enquanto não tem queixas, mas aponta-lhe um mau hábito: sai à noite para dançar com gente da sua.
Contou-me isto quando fui visitá-lo ao hospital, onde está por ter quebrado uma perna a esquiar nos Apeninos. E diz que só ousa pedir-mo a mim, que sou amigo e vizinho, mas poderia eu, discretamente, dar uma olhadela às andanças da princesa?
Poderia, mas não estou em idade nem sou polícia. Fora isso, já a tenho visto  entrar no carro de um príncipe da sua tribo, sujeito de metro e noventa, aí à volta dos cento e vinte quilos, e umas manápulas…
Sosseguei-o. Disse-lhe que tenho a certeza que ela se comporta. Porém, mais certeza tenho que vai ser o terceiro divórcio, e a seguir um quarto casamento, porque diz ele que quem "comeu" princesa não quer outra carne.

quarta-feira, janeiro 23

Senhas

(Clique)
Abre-se um caderno esquecido e de lá cai de tudo. A locomotiva era da linha do Tua, o edifício atrás a estação de Mirandela. A data? Fins dos anos 70. Da mesma altura é a senha de entrada no hospital de Bragança, e de 1986 o fac-simile das senhas de portagem da Ponte (como nós dizemos).
E esta, misteriosa, que não faço ideia como ou porque vias chegou às minhas mãos:
 (Clique)

terça-feira, janeiro 22

O salvador


Conheci o capitão sem barriga e sem barba, depois com barba à Che, mangas arregaçadas, uniforme de camuflagem, botas de paraquedista.
Visitei-o num rés-do-chão em Benfica, e quando a Revolução tinha ano e meio num belo apartamento dos altos do Restelo. Felicitei-o pela promoção a general, benesse que há muito aguardava e no seu pensar merecia pelos - palavras suas – "relevantes serviços prestados à Pátria e à Revolução".
Gosta de mostrar fotografias desse "incrível momento". Não se distingue bem, mas diz que é aquele ao lado do Jaime Neves. Ao lado do Chaimite também é ele.
- Aqui, com o Salgueiro Maia. Sou eu.
Será. A figura é a três quartos, num instantâneo desfocado.
- Fomos amigos. Amicíssimos. Um grande herói. Olha eu aqui, quando fomos esperar o Cunhal à Portela.
Digo que sim, mas é uma confusão de barbas, ora à Che, ora à Fidel, uma ou outra à Marx. Ele pega na esferográfica, aponta uma cabeça na massa de gente:
- Eu.
Ultimamente fala menos no passado. A barriga pesa-lhe, há muito rapou a barba, tem problemas com o genro, acha que a Pátria, entregue "a esta súcia" vai água abaixo.
Gosto dele, enternece-me quando acrescenta:
- E eu, nesta idade, não lhe posso deitar a mão!
 Enternece-me também porque o vejo como fiel retrato do salvador que vive em tantos de nós.

segunda-feira, janeiro 21

Blogosfera


Nas universidades em redor do mundo, de certeza se afadigam cientistas que, em busca de novos fenómenos para medir e estudar, apontam os seus teodolitos para a Blogosfera.
Digo já que acho o fenómeno uma maravilha. É sonho de menino que queria ter um jornal, uma emissora, uma tribuna, estar num daqueles balcões palacianos onde reis e ditadores aparecem a discursar.
Você acorda, levanta-se, liga o computador, alinhava duas frases do que julga pensamento, e lança-as para a World Wide Web.
No instante seguinte estão elas na Manchúria e no Turquestão, no Canadá, na Patagónia, em Budapeste, Vila Nova de Milfontes e Cerejais de Cima. Frases suas. Que vão e talvez sejam lidas - na curiosa tradução da Google - onde você nunca foi, nem em sonhos quer ir.
Mas como quase todas as maravilhas, também esta tem uma ratoeira: a de lhe dar a ilusão de que, deitando ao mundo as duas frases que alinhavou, existe, em muitas partes o lêem, lhe conhecem o nome, apreciam a subtileza do seu pensar, logo de manhã esperam mais frases.
Desiluda-se amigo/a: com blogue, twitter, iPhone, Facebook e o resto, você, eu, Lady Gaga, o Príncipe das Astúrias, o senhor Bernardino da padaria, Lili Caneças, e os restantes sete mil milhões de amarelos, pretos, esquimós, índios do Amazonas, suecos e minhotos, estamos sós, somos nada. 
Não adianta o fraseado. Oito, no melhor nove décadas, vamo-nos, ninguém dá conta que estivemos.

domingo, janeiro 20

Sétimo dia

(Clique)
Esta vista da minha janela ilude, a fotografia falsifica, mostra a brancura da neve e  esconde o crepúsculo cinzento de quase noite às cinco e meia da tarde.
Vou no sétimo dia de clausura. Na semana passada o termómetro desceu aos 16 negativos, neste momento anda por -5 e a promessa é de pioras.
Mas quanto mais arrefece, mais os holandeses regozijam, esperançados de daqui a nada patinarem na água gelada dos canais. Enfim, cada um lá sabe do que gosta. 

sábado, janeiro 19

O senhor Barthou



(Clique para ler)

sexta-feira, janeiro 18

O bife e a bolsa


Gente poupada a extremos que tocam a sovinice, foi calculado que as poupanças dos holandeses andam à volta de 300 mil milhões de euros. Nada mau para 16 milhões de almas.
Queixa-se agora o governo que não está certo levar o vício a tal exagero, é preciso pôr algum desse dinheiro a rodar, torna-se mesmo patriótico ir às compras, comer melhor, mudar de carro, aperaltar a fatiota.
Mas de nada vale a injunção: os cordões da bolsa continuam firmemente apertados e nas vitrinas do supermercado expõem-se os bifes de 150 g que, diz na embalagem, fartam dois.

quinta-feira, janeiro 17

Elmore Leonard

(Clique)
Há mais de trinta anos que o leio, apenas um dois dos seus livros me desiludiram (Cuba Libre - 2008 e Djibouti - 2010). Quando sai um novo é para mim dia de festa.

quarta-feira, janeiro 16

Como vamos


- Como vai isso?
- Bem.
- Mesmo bem? Estás com bom aspecto
- Faz-se o que se pode.
Fecha meio olho a reforçar a insistência:
- Então vais bem?
- Palavra.
Estas frases são repetidas umas quantas vezes, intercalando ele um curioso fungar. Conversa de supermercado, ambos parados no meio de gente afadigada nas compras ao fim da tarde.
- De facto ouvi dizer que ias bem, mas nunca se sabe. Também vou bem.
E ao mesmo tempo que dá a informação que não pedi, volta-me as costas.
Tenho a certeza que continuava a investigação se ouvisse de mim más novas, ou desse comigo macambúzio.
É escritor. A inveja facilmente "escreve"  pequenas comédias.

segunda-feira, janeiro 14

A Ladra



http://comosholandeses.blogspot.pt/

Esta é das que vai longe. Chegou, roubou, farfalha contente. Um abraço ao amigo que me avisou e parabéns à malandrinha - o nome é outro para este tipo de gente, mas estou em disposição benigna.
Tivesse comentário aberto, e-mail não se lhe vê, felizmente para ela, levava uma desanda que não iria esquecer.

domingo, janeiro 13

Solução para a crise

(Clique)
Com sentido de humor, Gerry List, jornalista da minha simpatia, descreve uma visita à Tate Modern, e como se viu numa sala cheia de borboletas a esvoaçar entre os visitantes. Explicava o catálogo que Damien Hirst, o artista que expunha, queria simbolizar assim "a fragilidade da existência".
Gerry List também suporta mal música de órgão, filmes falados em Sueco ou Dinamarquês, arte abstracta – "Não posso compreender que alguém diga que sente a sua vida enriquecida ao observar um quadro que é apenas uma superfície branca onde aparece um ponto negro. Untitled. IV , elucida um cartãozinho."  Barafusta ele ainda contra um enorme calhau intitulado Solidariedade, e a obra Holocausto: quatro cordas de roupa a secar.
Remata afirmando: "Tomar posição contra o subsídio da arte moderna pode ser visto como uma forma baratucha de populismo. Em democracia, porém, isso quase sempre é de preferir  acima do dispendioso e esbanjador elitismo."
Concordo por inteiro, com uma ressalva: a dos filmes falados em Dinamarquês. Neste caso Borgen, uma série que passa aqui na televisão, mas está à venda em dvd, com subtítulos.
Série política espectacular, excepcional, das que deixa de boca aberta.
Vi e pus-me a sonhar: Sidse Babbet Knudsen como primeiro-ministro, e aquela gente, incluindo os maus da fita, a fazer o que deve fazer, e o para que é paga, o querido e abalado Portugal saía da crise em dois tempos.