quarta-feira, novembro 30

Janela aberta

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Almoçar, abrir a janela, dar com um rebanho, ouvir o balido dos cordeiros, o ladrar dos cães, o tinir dos chocalhos: quem precisa de cidade?

Porra!

Gostaria, mas por pouca cabeça e insuficiente leitura, não me é dado, assim a meio de uma conversa, citar Platão ou Nietzsche, Sócrates (o filósofo), poesia de Juvenal, ou referir uma daquelas frases lapidares dos clássicos que dão aura de sabedoria.
Os interlocutores também nunca são gente a quem eu, dizendo, como Lucrécio,  Accidere ex una scintilla incendia passim, responderiam, valendo-se de Horácio, Aequam memento rebus in ardis servare mentem. (*)
Estou a brincar. É que me arreliam sobremodo os pedantes, os vaidosos que atiram uma frase de Tolstoï  e logo o amigo replica com outra, mais profunda, de Melville. Põe-me de través, aquela ânsia da diferença, da elevação, de se quererem mostrar cultos em extremo, tão lidos e acima do vulgo que leva a duvidar se têm funções do corpo.

Tenho mais com que me entreter ou incomodar, mas nem sempre consigo o equilíbrio desejado. Também pode ser do nevoeiro que dura, de noites mal dormidas, digestões pesadas, certo é que, ao contrário do meu desejo de paz e quietude, começo o dia com uma grande vontade de dizer: Porra!
…………
(*)Accidere ex una scintilla incendia passim (basta uma pequena fagulha para um grande incêndio).
 Aequam memento rebus in ardis servare mentem (cuida de manter a calma nos momentos difíceis).

terça-feira, novembro 29

Massa e força

Ontem ao jantar. O caso ia a meio quando a campainha que tenho na cabeça, e antes desactivara, começou a retinir, alertando-me para a história.
Romance dá, tempo tenho, a questão é se me sobra vontade para espiolhar o preciso e meter-me, como noutra altura fiz, onde não sou chamado. Creio que não. Também não me vejo a  correr riscos irresponsáveis na idade a que cheguei e, finalmente, cada vez me custa mais criar a mistura de pachorra e obstinação que a escrita pede.
Mas que caso! Tentáculos internacionais. Exotismo. Perigo. Ganância. Droga. Tráfico de armas. Prostituição. China Connection. Escravatura. E dinheiro. Rios dele a correr em condutas subterrâneas que desaguam em bolsos e daí escorrem para as contas de gente de respeito.
O mais fascinante, a valer um livro, é sair tudo isso do génio de um simples, um quase analfabeto, mas imparável força da natureza. Alguém que, vinte anos atrás, um banqueiro amigo me apontou na rua, dizendo:
- Quem o vê não imagina o homem que ali vai! O poder que tem! A gente que está por detrás dele!
Ao relembrá-lo acordei para a perturbante realidade de que é ilusória, mas altamente romântica,  a calma destes montes, que escondem mais do que mostram.
- O Duarte Lima? O Vara? – prosseguia o narrador – Isso são títeres, gajos mandados. Massa e força tem este!


segunda-feira, novembro 28

Sermão matinal

Mau começo do dia, o pensamento que me vem de que, comparando-a ao que oferece a imaginação, mesmo a mais aventurosa e espectacular das existências não passa de uma vidinha.
No meu caso, medindo pelo padrão corrente, não tenho motivo de queixa. Contudo, se me ponho a imaginar  o que poderia ter vivido, lá se vai o contentamento, desce-me sobre a alma o nevoeiro espesso que a esta hora cobre os montes. E travo já, ou o risco é grande de que o azedume tome conta de mim, pinte de negro a claridade, me cegue para as razões de satisfação.
Claro que ninguém se contenta com uma vidinha. Desejamo-la grande, colorida, cheia de momentos altos, excitações e amores, vitórias, mas ela tem aquele jeito de torcer as voltas, retira a lupa com que nos queremos ver, põe-nos defronte o espelho.
É isso um mal? Uma crueldade? Talvez apenas um ensinamento: aceitar sem resmungo a vidinha que temos.

Assumo aqui o papel de frei Tomás, pregando o contrário do que me vai na alma, esperançado que os fiéis se mostrem também avessos ao sermão.

domingo, novembro 27

Deus me livre

Em vida passada calhou-me por afinidade uma tia húngara, e pela primeira vez notei o curioso fenómeno de alguém cujo interesse primordial parece ser a recordação de nomes e parentescos.
Gabava-se um vinho à refeição, logo ela referia um Miklós, cunhado de uma sobrinha, que para os lados de Kaposvár herdara vinhedos. Partindo daí debitava toda uma genealogia de espalhados ramos, um nunca acabar de nomes, idades, casamentos,  profissões e laços familiares. Ainda por cima num inglês misturado de longas frases húngaras, uma provação para quem queria comer em sossego e tinha mais em que pensar.
O Destino livrou-me da namorada e da tia, mas anos atrás fez surgir o Ernesto dentre as brumas da memória da juventude. A alusão ao hino cabe aqui, porque o  Ernesto, nacionalista à moda antiga, usa uma linguagem arcaica, deleita-se a falar de avoengos, chusmas, flamas, baluartes, morgadios, donzelas...
À semelhança da húngara de nefasta memória, sofre ele igualmente de uma paixão por nomes e famílias, mas alargada com detalhes extremos em referência às posses, aos cargos, às amizades e cumplicidades, aos arranjos, traições, promessas falhadas, amores suspeitos.
Não se lhe pergunte, descuidadamente, se conhece fulano, pois resultará daí um historial minucioso do homem, seguido de casos e parentescos que abrangem primeiro a vila, se estendem pelo concelho, a província, e alcançam Lisboa.
Remata dizendo que, bem vistas as coisas, somos uma grande família, dum modo ou outro todos primos.
Afável por natureza, não contesto, mas Deus me livre.

sábado, novembro 26

Grande manguito

Enerva-se o cidadão com o que lhe parece mal e torto na governança do país. Barafusta.  Aponta o dedo. Exige soluções. Já. Como a vida é só uma pensa em si, na mulher, nos filhos, por aí fica a sua noção do futuro. Tetranetos e vindouros que se arranjem.
Acha sacrifício desmesurado perder metade do subsídio, ir menos ao restaurante, ao cinema, não passar férias, ou passá-las cá dentro. E a culpa sabe-o ele quem a tem: os mandões, os comilões, os filhos da puta no governo, nos bancos e nas grandes manjedouras.
Nunca lhe passará pela cabeça culpar os tetravôs que, também eles, cuidaram de si próprios, do mesquinho interesse particular, e fizeram um grande manguito para o interesse de todos, o da nação.
Diz a sabedoria popular: elas pagam-se. Estranho é que nada se aprenda.

sexta-feira, novembro 25

Luxos




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Há passeios e momentos de um luxo que nenhum dinheiro compra.

quinta-feira, novembro 24

A greve

Esta greve entristece-me. Não sou a favor nem contra, entristece-me porque já vi demais e o que delas resulta nunca é o cumprimento de promessas, o alívio de misérias ou a restituição de direitos.
Que esperam os grevistas? Mudança de governo? De política? O fim da corrupção? Do Chico-espertismo? Um aumento fulgurante da solidariedade social? Do civismo? Da defesa dos fracos? Árvores das patacas?
Nada se resolve com marchas, gritos, slogans, insultos, punhos erguidos. Tão-pouco com habilidades ou jeitos. Uma pátria decente educa os seus filhos, o filho que a respeita e se respeita, cumpre, não estende a mão, conhece os seus direitos e deveres, desdenha favores e desigualdades.
As verdadeiras mudanças não se fazem saindo um dia à rua com hinos, bandeiras e tambores. Demoram tempo, pedem outro espírito.

quarta-feira, novembro 23

Razões

Contaram depois que já em pequenos eram assim, por um nada a esgadanhar-se, dava aquele  um soco tirava o outro o canivete, arranhavam-se, cuspiam-se, sorte não se terem matado à fisga, se bem que mais de uma pedra tenha acertado no alvo e deixado marca.
Os anos passam, a vida corre e muito muda, o tempo de estranja deixou um verniz, o bocadito de dinheiro conforta, a paz de espírito dá outras maneiras.
Estavam à conversa no meio da rua e um, cuidadoso, pegou o outro pelo braço, a afastá-lo do tractor que se aproximava.Os cães de ambos começaram a rosnar, e de súbito estavam engalfinhados, mordendo-se, rebolando entre as pernas dos donos.
Um pontapeou forte, ao acaso, por má sorte o cão do outro, que se afastou a ganir. Entreolharam-se, pareceu que a conversa ia continuar e ainda disseram umas palavras, mas depois foi tudo repentino, o sangue espirrava, não se lhes podia acudir.
A cambalear, socavam-se com fúria assassina, se um caía esmagava-o o outro às patadas, as mulheres em volta a carpir, os anciãos abanando a cabeça. E de súbito sacaram das navalhas. Correu sangue dum braço, as roupas a tingir-se de vermelho, um ajoelhado, a arfar, a espumar, o outro ali perto caído de borco, o povo a acudir e aos gritos de pena.
Levaram-nos de ambulância. Veio recado que estão fora de perigo. Repete-se que de pequenos também eram assim, mas não é essa a razão. O que esteve na Suíça costuma dizer que só os pobretanas se contentam com a Espanha, e o outro dói-se. E que a mulher dele trabalhou nos telefones, nunca precisou de andar de escrava na limpeza.

terça-feira, novembro 22

O sabor da coisa

Isto aqui é longe, o correio vem ou não vem, de modo que o Público da passada sexta ainda  não chegou e assim me reporto ao que leio em Os Canhões de Navarone.
Escritor de talento, e como poucos analista competente e acutilante da política e da sociedade portuguesa, co-fundador e impulsionador da Periférica, Rui Ângelo Araújo é também meu amigo. Mas deita-se ele agora contra Vasco Pulido Valente, e eu, ainda mais velho e mais rabioso que o afamado colunista, sinto aquilo como bordoadas que também me são dirigidas. Porque é facto: releio os mestres e com eles continuo a aprender, mas ao contrário do que o meu amigo imagina dos gerontes, acredito de tal modo na literatura que até os novos leio. Muito mesmo. E a decepção é grande.
Há neste e naquele um lampejo de talento, mas não será o cinismo dos anciãos a eventualmente abrir a campa da literatura, sim a pressa que a maioria dos jovens escritores tem de mostrar, mostrar-se, e sobretudo o talento que, em vez de o devotarem ao aperfeiçoar da escrita e aprofundar das ideias, gastam na criação de sua imagem publicitária e nas estratégias de marketing.
Para ficarmos nesta época de matanças e fumeiro, tempo houve em que, com devido respeito, a literatura portuguesa se poderia comparar à chouriça caseira: receita experimentada, boa carne, bom tempero, repouso suficiente na vinha-d'alhos, tempo bastante a defumar para uma cura perfeita.
A actual, infelizmente, além de apressada no fabrico, é apresentada e vendida como as salsichas, tem comparável consistência, colorido, sabor e capacidade alimentar. Este Schopenhauer prova com curiosidade e de espírito aberto, mas por decência cala a qualificação que no íntimo dá ao sabor da coisa.
Caro Rui: nenhum azedume de velhote porá fim à literatura, mas os que verdadeiramente a quiserem manter viva e pujante, terão de pensar mais no mundo que os rodeia, esquecer o saracoteio dos seus pequeninos egos, acabar com os truques e pôr a vaidadezinha em banho-maria.

segunda-feira, novembro 21

Domingo, seis da tarde

Domingo, seis da tarde. Um escuro de noite feia, manto negro a abafar alegrias e esperanças.  Sem mais que fazer olho pela janela, mas deste lado da casa, virado para a serra, não vejo céu nem montes, só negrume. Os gatos aninharam-se na almofada junto do radiador. A minha mulher lê. Aqui e lá fora um silêncio pesado.
- Televisão?
Ela abana a cabeça sem me encarar, volto à janela, inquieto sem saber porquê, daí a pouco o telefone toca e olho distraído o relógio, seis e meia, atendo com um sentimento de mau prenúncio.
Quando volto a ver as horas passa das oito e continuo a ouvi-la sem interromper. As mortes,  as doenças, aqueles maravilhosos anos em Angola, mesmo durante a guerra. As festas no Lobito. Horas e horas de Land-Rover na picada. A avioneta. Os dois desastres. O Huambo, lembras-te? Não sei do que fala, mas digo que sim, lembro-me. As  caçadas. A felicidade de ter voltado quando tudo ainda corria bem. Em 71, lembras-te? O  divórcio. Ele já reformado. Ou foi antes? As enteadas que continuam a fazer da sua vida um inferno. A herança. As partilhas. A casa no Restelo, lembras-te? O filho quer ir para o Brasil…
Repete a promessa de um dia nos aparecer aqui, certa de que a calma dos montes a consolará do que perdeu, talvez mesmo ajude a reencontrar a pessoa que sente que deixou de ser. Continuo que sim, que sim, faço de vez em quando uns ruídos, produzo umas sílabas.
Passa das nove quando se despede com "beijinhos grandes".
A minha mulher continua a ler e os gatos a dormir. Aceno que vou fazer o chá e as torradas que ao domingo são o nosso jantar.

domingo, novembro 20

Entre o Céu e a Terra

Por aqui há bruxas. Fazem-se rezas, preparam-se mezinhas. Enterram-se saquinhos de ervas nas fendas da parede da casa inimiga, nas encruzilhadas aparecem galhos em forma de cruz, leva-se terra das campas, espetam-se alfinetes em retratos. Faz-se a figa, gasta-se dinheiro a cortar o mau-olhado, atam-se ossos de galinha com fios de lã molhados em água-benta.
Viaja-se em segredo para Tenebrón, mais longe que Ciudad Rodrigo, onde há uma "senhora do poder" que quando está com os espíritos lhe saltam faíscas das pontas dos dedos. Cura cancros, artroses e ataques, já a viram na televisão.
Contam-se casos. Repara-se que ao falar em certos defuntos o lume esmorece na lareira. À cautela faz-se o sinal da cruz e há sempre uma anciã que conhece aquela oração do Livro de São Cipriano para empontar almas penadas. As labaredas reganham vivacidade. Digam o que disserem, mas nota-se, o calorzinho é outro, dá mais agasalho.
Muitos o afirmam: entre o Céu e a Terra há mais do que o que os olhos enxergam.

sábado, novembro 19

Personagens

Tem você daqueles dias em que tudo corre de través? Dias cinza? Eu tenho. Para que a sombra e a depressão não levem a melhor, ou o meu julgamento do mundo não me faça encarar o suicídio, entretenho-me com fantasias.
Se a imaginação fraqueja valho-me de alguém conhecido e "dou-lhe" pele nova, outras qualidades, outros defeitos, vivências diferentes, porções de mim. Desse modo escapo, não me sinto responsável pelo que digo ou faço, pois não sou eu próprio nem o outro, mas uma invenção, personagem numa vida de empréstimo, que de real só tem a aparência que lhe dou, me dou. Ouvindo palavras que digo e não são minhas, surpreso de que quem me ouve aceite o teatro e nada faça para me tirar do transe.
Por enquanto hesito, mas pode bem ser que a fantasia em que julgo esconder-me seja a vida, e eu aquele que não se dá conta de que à sua volta não há gente, só personagens.

quinta-feira, novembro 17

Sobre a Liberdade

(La Liberté guidant le peuple - 1830 - E. Delacroix -Clique para aumentar)
Da boca de quem teve pais autoritários, se criou numa sociedade de costumes medievais e cresceu durante a ditadura, parecerá estranho afirmar que nunca tive problemas com a liberdade, mas assim é.
Pelos jeitos nasci com ela tão incrustada na alma e na maneira de ser, que o que chamam a sua falta nunca me incomodou, nem impediu que fizesse e procedesse a meu bel-prazer. Corri riscos, evidentemente, claro que levei pontapés, me puseram obstáculos, negaram direitos, mas nada disso nem ninguém conseguiu aferrolhar o sentimento. A liberdade é coisa minha, íntima, intocável, guardada no mais fundo. Não é para transacções. Pude, mas nunca a troquei ou trocarei por dinheiro, favores , benesses, proveitos, compromissos, regalias.
Escrevi algures e repito-o com verdade: faltam-me as asas, mas sou livre como um passarinho, metam-me a ferros e continuarei assim. Para ser franco, devo dizer que sempre me causou espécie o modo como em geral se alude à liberdade. Ora vem em maiúsculas, ora a fazem pomposa, por vezes nevoenta e façanhuda, manipanço que é obrigatório venerar. Uns querem morrer por ela, ou é a revolução que no-la  traz,  dizem que se deve lutar para mantê-la, mas para mim, quanto mais falam dela  mais nevoento lhe fica o contorno.
Liberdade verdadeira conheço uma: a do indivíduo. As outras assomam-se-me figuras de retórica, instrumentos a que cada um, cidadão, homem político, adolescente, militar ou carcereiro, dá o significado e uso que lhe convém.

É pena perdida contradizer-me, tão-pouco adianta demonstrar a simpleza  do meu pensar, pois melhor que ninguém conheço o que me limita. Mas já que tocámos no assunto aproveito para confessar que cedo me apaixonei pela Liberdade – sim, com maiúscula. Francesa, ainda por cima. Teria então oito anos, foi o segundo e violento coup de foudre da minha vida, assombrei ao vê-la erguer-se semi-nua de uma página colorida do Grande Dicionário Lello Universal Ilustrado.
Esplendorosos, acetinados, aqueles eram os primeiros seios que secretamente via, e logo odiei o Delacroix que a tinha pintado e antes de mim os admirara. De olhos fechados dei-lhe um beijo casto. E outro. E outro. E mais um. Depois atrevi-me. Ela disse que sim , apertou-me nos braços – os mesmos que tinham segurado a bandeira da Liberté, Egalité, Fraternité -  e  foi como estar no céu as muitas noites que dormimos juntos.
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A versão elegante pode ser lida aqui: http://travessaopontofinal.wordpress.com 

quarta-feira, novembro 16

"Haute Volée"

É muita morte à minha volta. Caem como estorninhos, oito enterros desde o começo do ano, uns quantos à espera de vez em lares, hospitais, arrastando-se por casa, pedindo para ouvir que não é grave, há milagres, agarrados ao que lhes disse o taxista, e até deu na televisão,  aquele médico de Saragoça que tem curado muita gente.
Mando coroas de flores, ofereço os pêsames, vou à missa do corpo presente, acompanho os funerais. Se esquecesse a idade e o estar avançado na lista, lembravam-mo os olhares que alguns me deitam, surpresos de que não tropece nem desvaire.
Esse tempo virá. Por enquanto lá vou indo, nada descontente, até divertido como há momentos, quando me ocorreu a memória de uma falecida, senhora que se queria da alta. Safara ela cuidadosamente uma genealogia de tamancos, a mãe era como se a não tivesse parido, a história da sua vida começava com a promoção do pai de furriel a general, momento alto o seu casamento com outro general.
Desde aí disparara a inventar que nem Fernão Mendes Pinto, e era viscondes assim, condes assado, barão isto, marquês aquilo, se em Portugal houvesse um pareceria a versão lusa e falante do Almanak de Gotha.
Chata, insuportável pedante, e contudo uma recordação que dela guardo sempre me faz sorrir. É a do momento em que, adolescente, tendo entrado na loja de panos do senhor Mateus, em Moncorvo, a oiço dizer com rispidez ao atarantado comerciante: - A família do meu marido é de haute volée!
Desconhecia. Em casa procurei no petit Larousse ilustré, julgando que fosse uma cidade em França. Não era.

terça-feira, novembro 15

Cinquenta anos?

Má fama, boa fama, burguesia assim, povão assado, nobre, plebeu, burguês, comuna, talassa, vermelho, azul e branco, a necessidade de classificar, pertencer e distinguir, encontra-se tão instintivamente arreigada na  maioria que se lhe assemelha contra natura o proceder do que dispensa rótulos e prefere ir sozinho.
Sou desses. Mas a todos respeito, em meio nenhum me sinto deslocado, não olho de alto para ninguém, tão-pouco me dobro em vénias e genuflexões. Para ser eu próprio e dar-me o gosto de pelo meu pé descobrir o mundo e as várias gentes, antes de Sinatra cantar My Way, já eu ia à contra mão e contra corrente. Pagando o preço, que duma ou doutra maneira tudo tem o seu custo, mas satisfeito com o lucro que daí veio, pois junto ao que no mundo aflige, também muito nele me alegra e diverte.
Assim li eu esta manhã que um escritor famoso se preocupa com o que acontecerá aos seus livros dentro de cinquenta anos. Ia franzir o sobrolho, perguntando-me em que nuvem habita, porque cá em baixo não anda. Mas depois sorri, dizendo-me, bem-aventurado o que se põe num pedestal e se imagina nele ad vitam aeternam.
Mas cinquenta anos, colega? Talvez nem cinquenta meses, como acontece a melhor obra.

segunda-feira, novembro 14

Vamos à vida

Quem dera, começar o dia escrevendo sobre casos suaves, histórias românticas, dar conta de pensamentos bons e delicados. Nada e ninguém me obriga a ser azedo ou melancólico, a escolha é minha, portanto bem posso fingir e embelezar. Mas estou no mundo, muito consciente de estar nele, sofrendo, mais consciente ainda da minha impotência como indivíduo e cidadão.
Tenho paz, segurança, conforto, mas acordo e, à medida que as horas passam, não é a beleza dos montes ou a simplicidade quase bíblica dos vizinhos que se me impõe, antes o sofrimento e o desespero que imagino nas cidades, a tragédia da pobreza envergonhada, o horror dos que sabem que amanhã não haverá pão, que o tempo a vir será de pobreza e dependência.
Tive sonhos. Consegui realizar alguns. Mas que vida, que futuro espera a multidão jovem que já descobriu que nem sonhos pode ter? Que vão fazer os que, chegados à meia idade, podem olhar para trás, mas nada vêem no horizonte? Alguém imagina de verdade o terror dos idosos sem meios nem amparo? Os idosos que um dia foram como você agora é?
Com que boa consciência poderia começar eu o dia contando histórias da carochinha? E dirá você: que adianta sofrer pelo que não se pode remediar?
Ambos temos razão e vamos à vida, esquecendo, fingindo não ver, rezando para que o mau Destino não bata à porta.

domingo, novembro 13

Lá se foi outro

A frase creio que é de Lincoln, e diz que de vez em quando se pode mentir a este ou àquele, mas é impossível mentir a todos o tempo todo.
O mesmo vale para as amizades e simpatias. Jesus será capaz de amar o mundo inteiro, mas o mortal deve ter consciência das suas limitações e aceitar que não se pode sentir amizade e simpatia por todos, tão-pouco constantemente.
Além disso, no geral, a amizade e a simpatia raro têm a qualidade, força ou duração das que os romancistas entusiasmados colam por vezes nos seus personagens. Com a fragilidade dos humores, no dia-a-dia basta um remoque, uma piada inocente, um sorriso que se não deu, uma distracção, por vezes um boato ou suspeita, adeus "grande simpatia", lá se vai a "profunda amizade".
O que fazia salamaleques e simbolicamente nos apertava num "grande abraço", acena com dois dedos um adeusinho ou olha de esguelha e "não vê". Há os que de súbito se ressentem de que não gostamos dos seus amigos, discordamos das suas ideias, não nos une a adoração por Mahler. Outros suportam mal não sermos como eles de partidos, seitas, lojas, clubes, grémios, querem-nos também com antolhos e cabrestos, a admirar pastores, refastelados no quente do rebanho.

Amizades e simpatias, as genuínas, demoram a crescer, mas um nada lhes põe fim.

sábado, novembro 12

Pobre dele?

Pobre dele? Coitado? Infeliz? Deus se compadeça? Desconhecemos as razões, mas era mau, mesmo para os que lhe queriam, os do seu sangue.
Trombudo, azedo, arrogante, violento, cheio de si. A soco e pontapé, com o cinto, à varada, mais de cinquenta anos bateu na mulher, nos filhos, na mula, no cão, nas galinhas que se lhe atravessavam no caminho. Desdenhoso, olhando de esguelha, as boas-horas, se as dava, saíam-lhe dentre os lábios como a cuspir um insulto.
É terrível, este sentimento: alguém morre e não deixa saudade.

sexta-feira, novembro 11

Fazer boa cara

Melancolia da manhã. É luta que muitas vezes perco, numas quantas empato, mas sobram bastantes em que, se não saio totalmente vencedor, pelo menos me dão ânimo para começar o dia.
Você, leitor anónimo, visitante acidental, cuja presença é apenas assinalada por um série de números, não se poderá dar conta, nem talvez o imagine, mas contribui em parte para a minha vitória sobre a melancolia matinal.
Salvo nas poucas vezes que se dão a conhecer, os leitores de livros são para o autor uma massa de gente anónima, e é desnecessário o contacto ou que de parte a parte exista simpatia. Um põe a mercadoria na praça, o outro compra ou deixa, lê ou não lê, a relação fica por aí.
O blogue veio transtornar isso. É porta aberta por onde o leitor entra sem precisão de bater, mas a sua presença é assinalada, um relógio marca os minutos da visita, uma lista mostra se chega pela primeira vez ou é cliente habitual.
Ao longo dos quatro anos que o mantenho, o TC imperceptivelmente criou em mim uma mentalidade que chamarei de lojista. Não que esteja a vender ou a apregoar seja o que for, mas se o freguês entra sinto obrigação de mostrar boa cara e, pelo menos, ter com ele dois dedos de conversa, neste caso escrever umas quantas linhas que por instantes o prendam.
Desse modo você, ao vir aqui, contribui para que o meu dia comece com melhor disposição do que a que me é natural.
Agradeço a visita, mas não se sinta obrigado/a.
Como disse? Acha que estou sombrio e a fingir boa cara? Às vezes tem que ser.

quinta-feira, novembro 10

Venha o magala

Os sistemas de governo há tempo deixaram de me interessar e, francamente, sinto-me incapaz de escolher entre a democracia e a ditadura, se estaremos melhor governados por banqueiros, ou se tem vantagem deixar que os magalas, promovidos, condecorados, salvando-se primeiro a si próprios, dêem uma mão à Pátria. Um rei? Por que não?
Agradável e útil seria que, na sua nova forma, e antes de começar a meter medo, o governante ou governo, agindo como é uso por luto nacional, impusesse às massas três dias de silêncio. Do modo que as coisas andam, já não é cada cabeça sua sentença, mas cada cabeça dezenas, centenas de sentenças e sabichonices, todos a gritar como deve ser, desesperadamente peritos, arreganhando os dentes às ideias do vizinho, cobrindo o país de uma desmesurada e espessa nuvem de raivas e frustrações.
Por nós próprios não seremos capazes, e assim, ou nos obrigam a mudar ou isto acaba em sangue. Houve tempo em que zombei do seu ar mata-mouros, mas começo a alinhar com o genial Otelo.