quarta-feira, agosto 31

V

Vinha de longe e Churchill popularizou-o, aquele V orgulhosamente patriótico a simbolizar a vitória dos bons sobre os maus. Eu, que sou velho, conheço-o desse tempo, e desde então, como tanto mais, passadas não sei quantas guerras, revoluções e insurreições, motins, levantamentos, pilhagens, quedas de tiranos, mudanças de regime, o símbolo caiu dos dedos do homem de Estado nos do homem da rua.
Entre as imagens que me  entristecem leva a palma a do riso alvar dos infelizes que nas revoltas brandem escopetas, fazem o V e gritam morras. Não que lhes queira diminuir o entusiasmo ou negar as razões de alegria, o direito ao sonho, mas porque até na bebedeira da mudança demonstram a sua impotência, dão prova de que não contam, são apenas recheio para o vazio do noticiário.

sábado, agosto 27

Vou de férias

Aventuras não vivo. Surpresas? Talvez a da morte, se for súbita. Casos extraordinários? Há dezenas de anos que não testemunho um, os que me aconteceram diluem-se aos poucos em olvido, os personagens perdem contorno, as peripécias tomam o melado da literatura de cordel.
Histórias para contar não tenho. Pouco disposto a olhar para um umbigo que nunca mostrou ser de inspirações, giro em redor de mim mesmo, alucino que nem um dervixe, assusto-me com o vazio das horas.
É mau agouro. Em semelhante estado alguns fecham a porta e escondem-se do mundo; outros desesperam no anseio de que os notem: um conheço que veste por inteiro de preto, sapatos vermelhos, barbicha e bengalinha.
No meu caso tendo para o triste e a ironia, sou bom no apoucamento do que em mim se poderia aproveitar, muito capaz também naqueles interrogatórios que me faço no papel simultâneo de polícia e cadastrado.
O que aqui escrevo raro me satisfaz, é muitas vezes coisa apressada, feita sobre o joelho, como se dizia no tempo do lápis e papel. Por isso, agora que toda a gente regressa vou eu de férias, o que tem sido mais ou menos regular passa a esporádico. Não garante qualidade, mas deixa que pense duas vezes antes de me tomar a sério.

sexta-feira, agosto 26

E então?

Tem mau hálito, o tique desagradável de prender o interlocutor pelo braço, um fascínio pelo que, metaforicamente, chama "as garotas ".
A conversa pode começar pelo preço dos livros, o tempo na Serra da Estrela, o cultivo das orquídeas, feito o intróito ferra o braço e sussurra:
- E então?
O advérbio só na aparência é interrogativo, antecede um "Como vamos de garotas?", acompanha uma gargalhada púbere.
Desculpa-se-lhe. É homem sem vivências nem sonhos, avô que não conheceu amores ou paixão e um dia, em choque, descobriu que a vida lhe escapara, tudo em redor era miragem, ele um morto-vivo.
"Como vamos de garotas?" parece chalaça, raros se darão conta de que é um grito de medo e um pedido de ajuda.

quinta-feira, agosto 25

E eu sem saber!


Pelo que pude averiguar, Maureen Vermeersch é livreira na Flandres. Mas que livreira! Como tem ainda 2 exemplares da edição neerlandesa de Montedor para vender,  e se ela o diz deve ser verdade, não esteve com meias medidas no marketing.

NIEUW boek uit gestopte boekhandel! Dit is de debuutroman van deze inmiddels wereldberoemde auteur en waarmee hij onmiddellijk zijn reputatie vestigde. 
Door de soberheid en beknoptheid onderscheidt het boek zich van vrijwel de gehele hedendaagse Portugese literatuur. 
Deze aaneenschakeling van misverstanden, desillusies en wanboffen, kan op een buitenstaander de indruk maken van een haast slapstickachtige komedie. Alleen: het is moeilijk buitenstaander te blijven. De lezer leest niet, hij zit er middenin en krijgt het tegengif te slikken tegen het plaatje van de onbedorven volksfeesten, het harmonieuze gezinsleven, de idyllische dorpjes. 
Nog 2 exemplaren te koop! 

Traduzindo:
"Novo livro (proveniente) de uma livraria que fechou as portas! Primeiro romance deste autor, entretanto mundialmente famoso, e com o qual de imediato firmou a sua reputação.
Pela sobriedade e concisão este livro destaca-se de quase toda a literatura portuguesa contemporânea.
O encadeamento de incompreensões, desilusões e infortúnios, pode dar a quem está de fora a ideia de que se trata de uma comédia pícara. Somente: é difícil permanecer fora. O leitor não lê, o leitor participa no enredo e engole o antídoto contra as (chamadas) inocentes festas populares, a vida familiar harmoniosa, as aldeias idílicas.
Ainda 2 exemplares!"

Mundialmente famoso! E eu sem saber!

quarta-feira, agosto 24

Passear o cão

(Em Abril - clique para aumentar)
Quem vai acreditar que tenho dias, muitos, em que me limito a passear o Rufo, fazer a minha parte dos trabalhos domésticos e, numa fixação de bovídeo, ficar depois oito, dez, sei lá quantas horas a olhar o ecrã vazio, perguntando-me que mistério faz com que por vezes uma palavra dispare a história, e noutras o cérebro pareça mergulhado em espesso nevoeiro.
De quando em quando haverá nisso uma dose de preguiça, mas nada explica como é possível que uma cabeça, que em geral funciona a contento, conheça tão longas horas de vacuidade.
Falei disso a um colega e ele seriamente explicou que, em vez de me afligir devo estar atento, pois é nessa "fímbria do inconsciente" – palavras suas – que a inspiração se revela.
Gente feliz acredita em inspirações, revelações, milagres, horas de sorte. Gente menos feliz pergunta-se que motivo fará empancar a maquinaria cerebral, e no meio tempo passeia o cão.

(Em Agosto - clique para aumentar)

terça-feira, agosto 23

Theo van Gogh

 Theo van Gogh (1957-2004) tinha um riso de criança. De criança ingénua e maliciosa. E um ar pretensamente bonachão, acentuado pelo seu modo de vestir, os suspensórios, o cigarro a pender dos lábios, o modo perplexo de quem não reconhece o lugar onde está, nem compreende bem as razões que o interlocutor invoca para discordar do seu ponto de vista.
Como todos nós era actor, mas melhor e de sensibilidade mais aguda que a maioria. Quando comecei a ler os seus artigos rendi-me de imediato à ironia e ao veneno que debitava sobre as figuras públicas. O rapaz, disse comigo, tem qualidades para ir longe, pouco importa em que campo. No cinema, no jornalismo, na política E tanto pelos seus múltiplos talentos, como pela rebeldia e o desdém que demonstrava pelo comodismo das ideias, das situações, das instituições, incluí-o na lista dos intelectuais que me mereciam apreço.
Ainda lá o mantenho. E confesso que, sem pessoalmente o conhecer, me despertou simpatia. Da única vez em que por acaso nos encontrámos no mesmo café, estive vai não vai para lhe falar, mas a minha reticência prevaleceu, a ocasião perdeu-se.
Talvez tenha sido melhor assim. Do meu ponto de vista, por razões que podem ter sido pessoais, sociais, políticas, ou idiossincrasias do carácter, tanto nos seus escritos como nas actuações na televisão, a partir de determinada altura Theo van Gogh como que descarrilou. Não somente a sua grosseria tinha ultrapassado há muito o aceitável, como parecia tornar-se uma desmesuradamente ampliada caricatura de si próprio.
A impressão que me dava era como que a de ter explodido em várias raivas e antipatias, tudo isso marcado pelo excesso do tom e  a acerbidade das afirmações e comparações.
Em questões de crítica a sociedade holandesa  possui uma notável capacidade de encaixe. Quem a não conhece dificilmente acreditará na rudeza que nela é corrente, como também estranhará que se possa chegar a tais extremos e depois, em vez de sacar navalhas, ir pacífica e civilizadamente tomar café.
Mas mesmo em tão razoável ambiente, e não obstante tudo o que sobre ela se possa dizer de bem, uma personalidade extrema como a de Theo van Gogh depressa atrai mais ódios que aderentes.
Cito de cor, porque a li há muito, uma passagem num thriller de Trevanian, na qual um personagem explica que um dos erros graves dos praticantes de judo, artes marciais e semelhantes, é pressupor que o adversário seguirá as regras do jogo. A probabilidade é grande que tal aconteça numa sala de ginásio, mas nula na luta travada numa viela . Enquanto um se ocupa com os ademanes e a coreografia dos saltos, o adversário pega em pau ou pedra e acaba por vencer.
É especulação, mas quanto a mim, e em mais de um aspecto, Theo van Gogh calculou mal, ou não se deu conta do desenvolvimento da sociedade em que se encontrava. Mostrava também aquela falta de tacto e ponta de arrogância que ao longo dos anos tantas vezes tenho ouvido: isto é a Holanda, aqui faz-se assim, é-se assim. O que implicitamente implica: aquele  que não compreende ou não aceita, que se lixe. Só que, fazer em Roma comos os romanos fazem, é um tanto diferente de, queira-se ou não, ser forçado a fazer como eles.
A meu ver, a Holanda em que ele imaginava funcionar deixara de existir. Na da realidade não havia lugar para o seu tipo de ludismo, e o jogral só era bem aceite na medida em que não brincava com o fogo, temperava as setas, e cautelosamente escolhia alvos inócuos: a família, o amor, o sexo, a religiosidade caduca.
Além disso, não se espera do jogral que se sente à mesa. Entretém e, terminado o acto, retira-se discretamente. Infelizmente, a discreção não fazia parte da bagagem de Theo van Gogh. Para si próprio exigia todos os papéis de relevo e a atenção inteira, indivisa. Aos amigos e ao público, à nação, à Europa, e mais tarde, quem sabe - o egocentrismo provoca dessas miragens - ao mundo inteiro, cabia apenas aprovar, admirar, aplaudir.
Se é atitude psicológica normal na chamada segunda infância, entre os três e os seis anos, do adulto em seu juízo, ou pelo menos relativamente equilibrado, espera-se que mantenha o egocentrismo dentro dos limites das conveniências. Ignorar as susceptibilidades alheias ou, mais grave ainda, desdenhar delas sem peso nem medida, é ir de olhos fechados direito ao desastre.
Nenhum argumento pode justificar o seu assassinato. Tão-pouco importa que o assassino seja um fanático, um psicopata, ou também ele um egocêntrico em busca de atenção e fama. E porque o choque foi enorme, fazendo temer que se iniciasse um período de violência e terror, é compreensível que se tenha então largamente discutido o avanço do Islão, e o terrorismo, a imigração ilegal, as más condições dos bairros pobres, a ameaça que tudo isso é para uma sociedade que se quer de paz e harmonia.
Mas nem o sacrifício do assassinado, nem as promessa que em semelhantes ocasiões a política sempre faz de que serão tomadas medidas, e que os problemas vão ser resolvidos com urgência, resultou em visíveis mudanças.
Fiel a uma longa tradição de esperar para ver no que param as coisas, a Holanda e os seus governantes continuam à espera. E eu com eles.
…………………
In A Ira de Deus sobre a Holanda (2008), inédito em português.

segunda-feira, agosto 22

O deus Pan

(Clique para aumentar)
É um sentimento entre a vontade de rir, o deixa lá, a irritação que me causam seitas e fanáticos da Natureza, uma atávica, imperdoável – aliás punida pela Justiça – e muito feia vontade de resolver coisas à cacetada.
Isto é maneira de dizer, pois contra estes todos, mais os que a fotografia não mostra, de nada me adiantava o cacete. Fora isso sou pacífico e tenho a ponta de bom senso que em certas ocasiões recomenda a cobardia.
Na verdade, o grotesco desta gente – grande virtude tem a roupa! – que protestava ontem contra a construção de uma incineradora na vizinhança de Clermont-Ferrand, não me aquenta nem arrefenta. Interessa-me, sim, o miúdo do chapéu azul. Na minha ideia tinha o braço direito estendido e estava a pontos de tapar a pilinha, mas o fotógrafo não apanhou o movimento.
Como, e felizmente, a tendência natural é para o decoro, o trauma de ser exposto a tanta feiura em tão tenros anos, por certo deixa marcas no carácter e na sensibilidade. Que Pan, deus dos bosques, da flauta, do instinto animal, e amigo das ninfas, se compadeça dele quando crescer.

domingo, agosto 21

Camilo

A Avenida Camilo, no Porto, tem numa ponta o que foi o Liceu Alexandre Herculano, e na outra um modesto busto do escritor. Ao findar 1940, garoto de quase onze anos, eu sabia quem era, já tinha lido Novelas do Minho, Eusébio Macário, A Brasileira de Prazins, talvez outros, sentia-me à vontade para imitar os mais velhos que, ao passar de manhã por ele, saudavam familiarmente o busto:
- Bom dia, Camilo!
Depois, engrossando a voz:
- Olá, ó Rentes!
Como tenho as minhas horas de superstição, pode ter sido daí que o Mestre me tomou em simpatia.

sábado, agosto 20

Voar sem asas

O colunista Bart Jan Spruyt, do semanário neerlandês Elsvier, é para mim leitura obrigatória e de proveito. No número desta semana escreve sobre o discurso do primeiro-ministro Cameron depois dos recentes motins de Londres. Segue a tradução que fiz do parágrafo final:

"Além disso, liderança política e democracia não combinam bem. Um líder é alguém que se eleva acima dos seus pares e mostra o caminho. Sabe mais, é mais capaz, tem mais poder. No nivelamento que é o objectivo de todas as democracias – uma divisão justa  de "poder, conhecimento e rendimento" – ninguém pode aspirar a elevar-se à liderança. Sentamo-nos todos ao redor da mesa e discutimos até alcançar um compromisso. A única coisa que, como primus inter pares, o líder pode fazer, é convocar a reunião e no final comunicar à imprensa o resultado.
A liderança é uma virtude nobre, não admira portanto que Cameron, primeiro-ministro de num país que ainda tem memória de um passado aristocrático, tenha dado provas de liderança verbal, seguindo as pegadas de Winston Churchill, seu longínquo predecessor,.
Cameron também não podia fazer mais. Em toda a parte as democracias arrancaram as asas aos seus líderes, mas exigem deles que nos tempos de crise sejam capazes de voar".