Num passado já longínquo de décadas, um dia de Agosto vinha eu do tribunal de Amesterdão, onde num julgamento a sentença me tinha sido desfavorável, e o prejuízo significava um desmesurado rombo nas minhas então precárias finanças.
A tarde era soalheira, o ambiente da Leidsestraat espelhava alegria, bem-estar, entusiasmo juvenil, tudo em contrário das sombras e obrigações que me afligiam, pois nem me atrevia a imaginar como seriam os dias que me esperavam.
Pouco capaz de nesse momento esconder o que sentia, ou parar o medo que me assaltava, facilmente se imagina a expressão do meu rosto, embora no íntimo julgasse que mantinha o aspecto e o modo neutro de quem vai seguindo o seu caminho sem preocupações de maior.
Surpresa, e grande, tive-a com o guarda do estacionamento, que conhecia há vidas. Ao ver-me entrar agarrou-me pelo braço, deu uma sacudidela, e com a franqueza bruta e directa do amesterdamês genuíno, conhecido por não perder tempo com salamaleques e cortesias, quase me gritou que eu não tinha o direito de mostrar uma cara assim. Por certo qualquer coisa me tinha corrido mal ou estava doente, mas não precisava de expô-lo, muito menos andar pela rua a afligir quem me olhasse.
O segundo abanão só não me fez cair porque ele me prendeu num abraço, e fingindo uma rispidez carinhosa de mestre-escola avisou-me que fizesse por esquecer, pois tudo passa.
Uma vez por outra, e como agora sem motivo aparente, recordo a momento e o conselho, mas sei também que nem sempre o segui, embora me tenha esforçado por travar o reflexo de fazer do rosto o espelho dos meus pesares e alegrias. Confirmo também a verdade do adágio: quem vê caras não vê corações. E bom é que assim seja, pois Deus nos livre de darmos rédea solta ao que vai cá dentro.