domingo, janeiro 30

Quando a memória falha

 

Estão ambos a chegar ao que se chamava a idade madura, mas com o correr do tempo tudo muda, diremos então que alcançaram a segunda juventude, o que sob certo aspecto corresponde à verdade, pois gozam ambos de boa saúde, têm uma vida fácil, confortável, problemas quase nenhuns.

Evidentemente, à maneira dos mais acontecem-lhes discórdias e pequenos arrufos, também criam daquelas situações que põem a descoberto que o carinho, o cuidado, as gentilezas, nem sempre são os alicerces que parecem, antes se assemelham ao verniz que um nada arranha.

Nados na burguesia citadina, são exemplares nos valores que a essa classe se atribuem, idem nos pecados, pecadilhos e o que lhes cabe de vícios, secretos ou não.

No Verãol andou ela dias e dias à procura de um colar, aborrecendo-o com a insistência de repetir que não sabia se o tinha perdido, lho tinham roubado ou a memória lhe estava a falhar.

Curiosamente disparou isso nele a recordação do conto de um homem que, para se livrar da esposa e herdar-lhe a fortuna a fizera enlouquecer, o que tinha conseguido à força de, tanto de dia como de noite, e isso durante meses seguidos, constantemente mudar de sítio ou esconder objectos que a mulher procurava, ou ele jurava que ela tinha andado a procurar, “encontrando-lhos” ele depois, provando assim à infeliz que já não sabia o que fazia, estava fora de si, sem dúvida perdera o entendimento.

Tinha sorrido de que aquilo lhe ocorresse, e sem maldade, pura brincadeira, começou por esconder objectos que sabia que a mulher iria procurar, ou mudando de sítio um ou outro que ela momentos antes tivera na mão

Ingénuo, deixando-se levar pelo sentimento que fazia aquilo sem mau propósito, e só até que ela o apanhasse com a boca na botija, sentiu-se duplamente traído pelo pedido de divórcio e ainda  mais pela acusação de crueldade mental.