domingo, janeiro 2

O médico e o monstro

 

Realista ou sonhador, criança, ancião, optimista ou cínico, pessoa de fé, ateu empedernido, devem ser poucos, talvez nenhuns, os que duma maneira ou doutra não anseiam que, no ano a  começar, se realise pelo menos um dos seus desejos, seja ele de pouca monta.

Infelizmente é essa uma lotaria ainda mais avarenta do que as da Santa Casa, e a probabilidade de nela acertar fica milhões de vezes aquém de que quando se joga nos casinos de Las Vegas ou Macau.

Contudo, embora seja assim a realidade e os sensatos repitam os avisos, há sempre em todos nós, mesmo os menos inclinados a sonhar, uma diminuta parcela de esperança de ver realizado um desejo, como acordar de súbito num desses paraísos tropicais onde tudo é luxo, beleza, alegria, céu azul.

Desde Outubro passado a gozar a reforma, depois duma vida activa de contabilista de nomeada,  Adão Freitas pode ser conhecido como alguém pouco ou nada dado a fantasias, mas esse é um Adão de fachada. Muito outro se mostra o verdadeiro, aquele que nem com a Susana, sua cara metade há dezoito anos se abre, a ponto que fosse ele inclinado para a loucura, quase seria assunto para falar de um dr. Jekyll e mister Hyde.

Dá-se o caso de que continua a manter a face pública e profissional do contabilista rígido que foi, fanático da poupança, razão de muita zanga com Susana, boa esposa mas desleixada e mãos largas. Contudo, grande surpresa teria ela, se descobrisse que o somítico com quem partilha a vida, cuja autoridade aceita submissa e sem discussão, há vidas que em cada Dezembro gasta mil euros no El Gordo. A surpresa, porém, seria maior se lhe pudesse ler o pensamento, pois o tortura a ideia de que ganhando se vai separar dela, e então terá de lhe dar metade.

De modo que como imagina soluções sem conta, trazer o dr. Jekyll e mister Hyde à baila não parece despropositado.

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Mudança de poiso: