domingo, outubro 31

Pelo eterno descanso

 

Depende do carácter, sensibilidade, natureza do próprio, e assim para uns os sonhos são apenas isso, outros vêem neles pesadelos e previsões que raramente anunciam algo de bom.

Conta o Veiga que desde há tempos quase todas as semanas se lhe repete um sonho que, como tantas vezes acontece, diria ser sem pés nem cabeça, não fosse a bizarria de incluir uma cena real e penosa demais, a da noite em que tinham convidado a sogra para jantar, e a Deolinda já então muito doente, enfraquecida pelo tratamento, se pegou com a mãe por causa de uma niquice.

Tinham desatado aos berros e aos insultos, deitando-se culpas, a certo ponto julgou que seria melhor pôr fim àquilo antes que acabasse mal. Foi então quando a Deolinda, desvairada, se levantou e, parecendo nem dar conta do vinho derramado, pegou na garrafa pelo gargalo num gesto de ameaça contra a mãe.

Diz ele que a sua reacção foi instantânea, nada o poderia travar, nem durante um segundo lhe ocorreu a gravidade da doença da mulher, o empurrão foi tão violento que a atirou para o soalho. Queria ajudá-la a erguer-se, mas ela estrebuchava, finalmente lá conseguiu levantar-se e virou-lhes as costas.

Entretanto ambas faleceram, a Deolinda faz quatro anos este mês, a sogra em Maio passado. No sonho que tanto o aflige aparecem ambas ainda em vida, fingindo uma relação que de verdade nunca tinham tido, até que se repete o momento em que Deolinda, num berreiro de doida, os olhos a chamejar, pega na garrafa e avança, agora não para a mãe, sim direita a ele, que em pânico dá um grito mas não consegue evitar a pancada.

A emoção é de tal modo poderosa que o acorda dum salto e a tremelicar, banhado em suor, inquieto por não compreender qual será o que causa a mudança dos detalhes. A menos que...

Nunca foi de bruxarias ou religiões, e pode bem ser que para tudo haja explicação, como é legítimo aceitar ser infindo o que ignoramos. Também não quer saber o que penso, apenas que o oiça:

- Isto sou eu a supor. A minha relação com a Tânia começou uns três meses depois da Deolinda ter adoecido. Fui cauteloso, consegui que nunca desconfiasse, na cama continuou tudo como de costume, sem altos nem baixos. Mas imagina que há outros mundos, formas de vida que nem conseguimos imaginar, e lá onde está a Deolinda... É que só assim consigo explicar estes pesadelos. Também não tencionava confessar-to, mas és amigo... Falei ao padre Vítor e ficou combinado, no dia dois de cada mês rezará uma missa pelo eterno descanso da alma dela.