sexta-feira, outubro 8

O sabor do vinho

Longe de mim a ideia de me pretender perito em questões de vinho, maneiras mundanas ou costumes populares. Longe de mim, também, a vontade de ser perito no que quer que seja, já que o perito tantas vezes se distingue pela estreiteza de vistas e a ânsia irreprimível de tudo querer relacionar com a matéria da sua perícia. E Deus me livre de sofrer um dia o castigo de me tornar perito à holandesa, aquele género que, quer se trate da literatura guarani ou do fabrico de calçado ortopédico, tudo sabe sobre o assunto da sua ciência, exaustivamente fala e escreve sobre ele.

De acordo com a minha natureza, pois, e sem pretensão de um saber que não possuo, eu gostaria de fazer algumas observações sobre o vinho, em particular sobre o vinho e os peritos do vinho. Para as justificar, todavia, terei de primeiro contar algo sobre mim próprio e as relações que, praticamente desde a nascença, mantenho com esse líquido indispensável. Não se aflijam os abstémios. Indispensável emprega-se aqui para significar que, sem vinho, nenhuma refeição é realmente digna desse nome, nenhuma festa conhece verdadeira euforia. Basta recordar o desprazer em que nos deixa um almoço composto de duas sandes e um copo de leite, a melancolia de um bazar de caridade com chá e sanduíches de pepino.

Que idade teria eu? Dois anos? Três? Simultaneamente visual e olfactiva, a primeira recordação que guardo do vinho é a de minha avó a bater gemas de ovo num copo grande, deitar-lhe generosas colheradas de açúcar, enchê-lo até à borda com vinho do Porto, mexer, e pôr-me à boca esse delicioso fortificante.

Talvez porque quase toda a gente na aldeia tinha vinha, a memória que me ficou do ciclo da lavra, da poda, da sulfatagem e da vindima é menos pessoal, confundem-se-me os anos, julgo ser da juventude o que foi da infância e vice-versa. Mas certos momentos gravaram-se fundo. Vejo-me garotinho de palmo na pisa das uvas no lagar, guiado pela mãos dos mais velhos, nu em pêlo para que a força do mosto me tire as borbulhas e limpe o sangue. O cheiro do vinho doce e espumoso despejado dos cântaros para as cubas. O mistério da fermentação. Os homens na adega na manhã de São Martinho, à espera que meu pai espiche a pipa e tire dela o vinho novo. A prova. As infindáveis discussões sobre a qualidade, o sabor, o preço que valeria, o trabalho que tinha custado.

Na mesa, a cada refeição, a jarra do vinho novo ou a garrafa do vinho doutro ano, escolha arbitrária ditada pelos humores do chefe da família e uma vez ou outra motivo de zombaria disfarçada.

Desde a época longínqua da meninice, pois, sempre o vinho foi para mim um prazer e um hábito. Nunca um luxo ou um vício, mas o delicioso complemento da comida, a bebida ideal das horas de boa companhia.

Infelizmente, porque vivo aqui, desde que a Holanda em massa descobriu o vinho e os peritos tornaram o seu consumo uma ciência, quase uma religião, o prazer que sempre senti com ele tem diminuído.

Nos jornais os peritos explicam-me como aspirar os seus eflúvios e como devo mascá-lo para fazer o inventário dos seus sabores. Em livros volumosos ditam como pegar no copo, ensinam quais os vinhos que se devem absolutamente preferir e os que se devem absolutamente desprezar. Falam de temperaturas ideais para beber. Regem cursos onde num fim-de-semana se sai diplomado na arte de provar. Fundam associações e confrarias. Decretam a forma dos copos, o grau de humidade das adegas, o melhor ângulo para a decantação, o número de horas que uma garrafa de grand cru deve arejar e, se estivesse na sua mão, por certo determinariam o funcionamento das papilas.

À infância ninguém retorna e o passado perde-se sem remédio, mas por repentes toma-me a vontade de voltar à terra onde nasci e lá, tirando da prateleira da cozinha um copo grosseiro, sentar-me num escabelo junto da pipa e beber como dantes: sem ciência nem medo de errar, só por gosto.