domingo, outubro 10

"Era o vinho, meu Deus, era o vinho!" (1)

Pelas circunstâncias do afastamento e voltas da vida, sou o primeiro das longas gerações da minha família que não plantou vinha nem fez vinho. Mas guardo a lembrança dos anos em que fui testemunha e modesto participante, porque criança, das fadigas e alegrias da vindima, da pisa no lagar, do encher das pipas, do momento em que no dia de São Martinho, na companhia de parentes e amigos, se abria solenemente o vinho novo. Que às vezes saía mau, por falta de cuidados suficientes, ou devido ao mau olhado duma vizinha que era bruxa.

Não sei se será a mais antiga, mas uma das primeiras recordações que guardo do vinho é a de vê-lo jorrar dos tonéis para os garrafões e o espanto de que a torneira, dois bocados de madeira, coisa de nada, pudesse travar aquela força da natureza. A recordação dos odores também ficou: o bafo doce dos cestos de uvas na vindima, amontoados ao sol. O cheiro adocicado do mosto e a frescura dos barris lavados, cheios de água para que as aduelas inchassem. O fedor acre do fumo das mechas de enxofre, a arder dentro das pipas para a desinfecção. O aroma leve do vinho novo ao ser trasfegado. A fragância das garrafas de vinho velho servidas nos dias de festa. O perfume do Vinho do Porto combinado com o cheiro e o gosto do pão-de-ló, os doces de amêndoa, os “doces de champanhe”.

 

A nossa vinha maior ficava a boa meia hora de caminho da aldeia. Levar para o lagar à rédea as burras e as muares carregadas com os cestos de uvas vindimadas, era trabalho que as crianças podiam fazer, a paga era poder voltar do lagar para a vinha a cavalo na burra.

Tenho sete ou oito anos e tantas vezes fiz já o caminho que, no dizer de minha avó, o sol me tisnou “como um pretinho da África”. Ao fim da tarde regressamos todos a casa, os homens e as mulheres em passo arrastado, derreados da canseira do dia e do calor; as bestas mais fortes com três cestos, em vez de dois. Eu à frente, a assobiar, levando à rédea um burrinho tão manso que lhe chamam “Menino Jesus.”

No começo o caminho é plano e confortável, mas na descida para o vale torna-se íngreme e caminhamos ligeiramente inclinados, firmando os pés. As bestas procuram equilibrar-se curvando as patas traseiras e retesando as da frente, o que lhes dá um ar de cómica teimosia. De repente tenho a impressão de que o “'Menino Jesus” quer parar e volto-me. Ele assusta-se com a brusquidäo do meu movimento, estaca, os dois grandes cestos cheios deslizam sobre a albarda e apanham-me em cheio.

Oiço gritos, com certeza me julgam morto, mas estou apenas estatelado no chäo, sem uma arranhadura, totalmente coberto de uvas.

O resto do caminho até casa vai ser um martírio, todas as moscas, moscardos e vespas da vizinhança a fazerem de mim o seu manjar.