domingo, outubro 17

A bata do "Diospiro"

Engana-se quem julga que certos casos só se davam antigamente, pois basta abrir bem os olhos para ver que sobram as situações contrárias. O problema está em que às vezes se corre o risco de deixar pistas, e sofrer as consequências, pois ninguém aprecia ver na praça pública o que se deseja que fique entre quatro paredes.

O recurso à ficção é a melhor alternativa, pois não resta campo para o foi não foi, disse não disse, nem para as suposições que com o tempo tudo acabam por envenenar.

Mudemo-nos assim para uma vilória nos confins, onde um órfão de pai é criado por duas tias, humildes na origem e ambas viúvas, mas com bastante de seu por desde o começo terem sabido tratar da vida. A terceira irmã, mãe do miúdo, há muito navega em parte incerta, pagando as favas pela má cabeça, drogas, carraspanas, mancebias falhadas e uma juventude de rock ‘n roll.

Mal saído dos cueiros, logo o Alberto deu mostras de que nas veias lhe corria o sangue do bandalho que na mãe deixara a semente. Adolescente de poucas falas, nunca as tias sabiam ao certo de que lado nele soprava o vento e, ora a sorrir, logo depois trombudo, cedo aprendeu a arte da manipulação, refinando-a com a camaradagem do “Diospiro”, outro da mesma cepa mas sem tias, e tão amigo do alheio que ainda nunca resistiu a deitar mão ao que vê descuidado.

Foi dele a ideia que com essas coisas do corona, vacinas, o diabo a quatro, tinha chegado a altura de aliviar as tias do Alberto de um bocado de massa, o que não parecia difícil, pois além de viverem ambas as idosas no terror de serem infectadas, tinham um tal medo de injecções que  bastava falar de agulhas para que se pusessem a tremer.

Por recomendação do sobrinho apareceu o “Diospiro” no papel de jovem médico, completo com estetoscópio pendurado no pescoço, bata branca, óculos, esferográficas no bolso, ar ligeiramente autoritário mas simpático e confortador.

Tinham as senhoras razão em desconfiar das vacinas e não quererem nada com agulhas, pois da mesma opinião eram muitos médicos, só que não se podia dizer porque havia grandes interesses, havia a política, sabe Deus que mais. Agradecessem ao Alberto, que lho tinha explicado e pedira que fosse proteger as tias com o creme que no hospital, em segredo, só era para gente importante.

Tal como nos filmes nesse momento bateram à porta, mas felizmente não era a Guarda, sim a Idalina do Cenro de Saúde. O doutor Marcos dera pela falta da bata e do estetoscópio, só podia ser o “Diospiro”, fossem procurá-lo.