segunda-feira, março 23

Sai o tiro pela culatra


- É a vida, é a família, o trabalho, os aborrecimentos, as más surpresas, agora essa coisa do vírus… - com a mão esquerda espalmada, o indicador da direita a fazer de ponteiro e um modo soturno que vai mal com a sua costumeira jovialidade, ao mesmo tempo que calcula os seus incómodos e os que afligem o mundo, a expressão do Vasco leva-me a sorrir, pois não o conheço dado a queixumes, todo ele é vitalidade, vive folgado, aos cinquenta e dois a sua postura mostra ainda o centro-avante de rugby que foi na juventude.
- Não sei como aconteceu, cedi ao impulso. Devia ter pensado, mas a verdade é que no fundo ainda sou um bocado romântico.
Conta então que bem sabe do perigo que no Facebook correm os desastrados e que na internet também vale a sabedoria antiga da cautela e caldos de galinha, mas um homem tem os seus fracos e de alguns nem faz ideia o que os causa, certo é que o que tinha começado como uma inocente busca de sites de contacto não demorou a ser vício, ele a perguntar-se por que não parava com aquilo e no momento seguinte a dar mais um passo, caindo finalmente na tentação do encontro, mas seguro de si e certo que o rombo não seria maior do que o custo do jantar.
Faz uma pausa, deixando em suspenso se vai continuar ou se está arrependido, de modo que nos sentimos acanhados, ele por esconder a confidência, eu porque sofro mal ouvir casos de aventuras amorosas, não tanto por falta de interesse ou simpatia, antes porque por experiência as mais das vezes são de uma banalidade que entristece e põem a nu traços de carácter que no que respeita os amigos prefiro desconhecer.
Mas enfim, estávamos naquele impasse e eu, com mais idade do que o pai dele, resolvi que devia ser simpático e encorajá-lo a avançar:
- Se não contas deve ser que o tiro te saiu pela culatra. Saiu?
- De facto saiu.  Não esperava aquilo.
A avaliar pelo modo como desviava os olhos para a porta do café, o assunto era talvez mais penoso do que eu supunha e, ele a tamborilar com os dedos no tampo da mesa, eu a esconder a minha impaciência, ali ficámos num silêncio que já se tornara penoso quando ele sussurrou: - Lembras-te da Sara, a filha do…  
Nesse instante o telemóvel tocou, ele atendeu, fez um gesto de desculpa e levantou-se, acenando que depois falaríamos.
Faz meses que não nos vemos mas não estranho que me evite, há muito me habituei às confidências que o não são e para uns servem de espelho da vaidade, outros usam-nas como válvula de escape para medos que não confessam.