Homem de cultura e saber, historiador, arqueólogo,escritor, biógrafo, Mesário-Mor da Confraria Queirosiana, franco na fala, claro nas ideias e meu amigo, Joaquim Gonçalves Guimarães publicou dias atrás em http://eca-e-outras.blogspot.pt/ o texto que segue.
A muitos
parecerá longo, mas esses provavelmente não ganhariam com a leitura. Aproveitarão,
como eu aproveitei, os que arranjam tempo para ler e pensar.
As atuais classes sociais
Parece-nos óbvio que a sociedade continua dividida em classes e resultou
ingénua nos seus propósitos a tentativa de igualdade da Revolução Francesa,
impossível de concretizar-se, como o demonstraria Darwin, porque estamos a
falar de seres vivos e não de “peças”.
Se nos parece hoje completamente inapropriada a velha classificação
classista em clero, nobreza e povo, ela própria já complicada desde o século
XIV com a ascensão ao poder da burguesia urbana europeia, também nos parecem
completamente fora da realidade as suas denominações derivadas, ainda
sustentadas pela terminologia dos pensadores do século XIX, nomeadamente os
marxistas, que falam ainda muito, e até aos dias de hoje, em povo e em
burguesia. Ora parece-nos que tal já não tem fundamento nem histórico nem
sociológico. Talvez seja apenas um comodismo cultural.
Ainda há pouco tempo ouvi, a propósito de terrenos baldios, um presidente
de junta de freguesia falar em nome do povo exatamente como o fariam qualquer
fidalgo ou frade do século XVIII sobre a sua coutada ou o seu couto, não por
poderem ser úteis à comunidade, mas apenas porque lhe pertenceriam por direito,
só faltando o “divino”, agora às vezes substituído pelo “constitucional”. Mas
sem qualquer alusão à circunstância de tais terrenos servirem ou não para
alguma coisa, ou mesmo gerarem despesa pública, como era o caso devido aos
incêndios e seu combate. Rendimento? Interesse comunitário? Um rebanho de uma
dúzia de cabras e a “satisfação da propriedade”. Ora o tal nobre ou o tal
frade, ainda que com fundamentos ideológicos diversos, invocariam noutros
tempos os mesmíssimos motivos deste representante do povo de agora. Porquê?
Porque hoje já não há separação funcional das classes mas apenas graus ou
gradações simbólicas, a sua representação social é transversal porque se
democratizou e a única diferenciação efetiva é a económica, gerando ou mantendo
a capacidade de sobrevivência e de preponderância do indivíduo, e não já da
classe, na sociedade atual.
Nos dias de hoje são pois as seguintes as classes sociais existentes, desde
a base da pirâmide para o vértice (para usar ainda uma imagem clássica): em
primeiro lugar os Indigentes, aqueles que são completamente dependentes dos
outros para sobreviver, não auferindo qualquer remuneração regular nem detendo
qualquer meio ou força de produção de bens e serviços.
Seguem-se os Pensionistas, com diversas denominações, aqueles a quem a
sociedade organizada, através dos setores público, privado ou misto, assegura
uma remuneração regular e pré-determinada, quer ela corresponda à reforma
devida pelos descontos que efetuaram durante a sua atividade produtiva, quer
corresponda ao subsídio, ainda que temporário, de desemprego ou qualquer outra
indeminização social.
Temos depois a grande massa dos Assalariados, aqueles que recebem uma
remuneração contratada ou à tarefa, em troca do serviço que prestam ou dos bens
que produzem. É também do seu trabalho que sai a maior parte dos descontos para
sustentar os Pensionistas e os Indigentes.
Seguem-se os Produtores, aqueles que sob várias formas organizativas
“trabalham por conta própria”, na produção de bens e serviços que a sociedade
lhes paga diretamente, quer de bens intelectuais (pintores, escritores,
músicos), quer de serviços (guias de viagem ou jornalistas free lancers,
por exemplo), quer agricultores ou industriais. São os donos dos seus próprios
meios de produção e deles, bem assim como da conjuntura económica, são
totalmente dependentes.
Temos depois os Especuladores, aqueles que, sem nada produzirem
diretamente, vivem dos rendimentos do capital que herdaram ou acumularam e das
suas mais valias. Não tanto como os anteriores, o seu número e importância
social variam muito, dependendo do capital investido e do saldo conseguido e do
volume dos resultados alcançados. Normalmente os indivíduos desta classe
seguram-se económica e socialmente como Pensionistas.
Finalmente, em volta do vértice da pirâmide, temos os poucos mas muito poderosos
Capitalistas, aqueles que, partindo de ideologias religiosas ou políticas
várias, são protegidos por governos, polícias e exércitos, detêm a riqueza das
nações, mandam nos governantes – que todos os outros podem eleger ou suportar
no poder – e controlam a sociedade de acordo com uma estratégia local, regional
ou global de acumulação contínua de riqueza artificialmente valorizada na bolsa
e na especulação bancária e não no mundo do trabalho, a qual pouco ou nada tem
a ver com a racionalidade humana, as bondades das religiões, os desesperos das
fomes e o socorro às desgraças naturais, enganando os cidadãos entretidos com
fantasias sociais e culturais. Conseguem (e conseguem-no muitas vezes)
transformar a guerra, a doença, a fome, as crenças, a vida das pessoas, a
existência enfim, no lucro que continuamente oleia e alimenta a sua máquina.
São estas as classes sociais atuais, ainda que com algumas possibilidades
de sobreposições e variantes. É certo que Eça de Queirós já falava de «tempos
de semitismo e de capitalismo», quando ainda a «Burguesia Liberal aprecia,
recolhe, assimila com alacridade um cavalheiro ornado de avoengos e solares» (A
Relíquia), quando alguns padres sonhavam ainda ter «o privilégio de
destronar os reis e dispor de coroas! (O Crime do Padre Amaro), e o povo
tinha aquela «morosa paciência de boi manso» (A Correspondência de Fradique
Mendes). Mas tudo isso é século XIX e vale hoje tanto como as poesias de
Castilho. Saiba-me você, caro leitor, sem se enganar a si próprio, se é
essencialmente um Indigente, um Pensionista, um Assalariado, um Produtor, um
Especulador ou um Capitalista e vai ver que passa a perceber muito melhor o
mundo que o rodeia. E arrume na sua estante, ao lado dos romances de Júlio
Dinis, essas velhas e hoje inúteis denominações de clero, nobreza, burguesia e
povo, ou semelhantes.
Mas, dir-me-á balbuciando, que farei eu a partir de agora com o estatuto
social que supunha ter, a minha árvore de costados sem avós adúlteras, o título
concedido a um longínquo antepassado que matou infiéis nas Cruzadas, a caveira
de um servo da gleba morto em Aljubarrota de quem descendo segundo os mórmons,
a memória de um visconde negreiro liberal, um tio-avô carbonário irmão do bispo
do Dongo antepassado de um atual ministro de antiga colónia, um avô morgado
membro da Internacional, um agricultor da campanha do trigo, um capitão da
marinha mercante, um pai e uma mãe crentes nas aparições de Fátima e nas
excelências do Estado Novo? Tudo isso vai para a lixeira da História, seu
execrável positivista?! (chamar-me-á você assim à falta de melhor, mas olhe que
já não se usa!). Não sei que lhe diga. Se puder, estime e cultive a sua
dimensão humana, guarde as suas memórias, e se puder estude-as, ou dê a
estudá-las a quem o saiba fazer, para se libertar do sarro da História, e
talvez isso lhe seja útil e proveitoso.
Mas, dirá ainda você perante a minha já indisfarçável impaciência, mas
então o meu doutoramento em semiótica quântica, a minha grã-cruz, a minha
filiação no Ordem do Supremo Bem, a minha taça internacional de golf, o diploma
de melhor pai de família do ano, não valem nada, não me separam dos
“indiferenciados”?
Guarde-os bem guardados e que lhe façam bom proveito. Não sei se lhe
agradará saber que muitos outros Indigentes, Pensionistas, Assalariados,
Especuladores e (muito poucos) Capitalistas, têm curriculum idêntico ou mesmo
superior ao seu e isso não os tem feito mudar de classe social, nem para
“cima”, nem para “baixo”. A não ser na República da Fantasia, onde o ingresso
ainda é grátis.
J. A. Gonçalves Guimarães