"Meu caro Fialho
Os franceses falam muito do espalhafato que faz Satanás,
quando o mergulham dans un bénitier. Eu nunca assisti
a esta escandalosa afronta feita ao venerável pai da mentira; nem você também,
suponho eu. No entanto imagina você bem como Belzebu berrará e escoucinhará, ao
sentir o contato untuoso do detestado líquido. Pois, querido amigo, assim eu
escoucinhei e berrei, enquanto você, com mão dura e forte, me estava mergulhando
na água benta da sua crônica sobre “Os Maias”.
Você concordará que esta analogia é rigorosa. Eu, com efeito, represento para você satanás, o pai de toda a falsidade. Eu sou aquele mafarrico que escolhe, para personagens do seu livro, não sei que janotas petulantes e estrangeirados, em vez de dar, nessas páginas, o lugar preeminente ao Marquês da Foz, aos empreiteiros das obras do porto de Lisboa, aos rapazes beneméritos que foram premiados na escola; aos construtores do bairro Estefánia, ao Conselho de Estado, etc. etc. Eu sou aquele porco sujo que pretende que as mulheres de Lisboa têm amantes, e que, nos jantares de sociedade, em vez de discutirem Hegel, o positivismo, e a psicologia das religiões, falam de criadas e de cabeleireiros! Eu sou aquele gênio da maledicência, que afirma que os esplendores da Avenida são talvez inferiores aos da Via Ápia, e que a sociedade que a freqüenta não é talvez nem a mais culta nem a mais original do universo, etc., etc., por aí além.
Você concordará que esta analogia é rigorosa. Eu, com efeito, represento para você satanás, o pai de toda a falsidade. Eu sou aquele mafarrico que escolhe, para personagens do seu livro, não sei que janotas petulantes e estrangeirados, em vez de dar, nessas páginas, o lugar preeminente ao Marquês da Foz, aos empreiteiros das obras do porto de Lisboa, aos rapazes beneméritos que foram premiados na escola; aos construtores do bairro Estefánia, ao Conselho de Estado, etc. etc. Eu sou aquele porco sujo que pretende que as mulheres de Lisboa têm amantes, e que, nos jantares de sociedade, em vez de discutirem Hegel, o positivismo, e a psicologia das religiões, falam de criadas e de cabeleireiros! Eu sou aquele gênio da maledicência, que afirma que os esplendores da Avenida são talvez inferiores aos da Via Ápia, e que a sociedade que a freqüenta não é talvez nem a mais culta nem a mais original do universo, etc., etc., por aí além.
Por outro lado a sua crónica, meu caro Fialho, é uma bela
pia de mármore, cheia a trasbordar de água benta da virtude, do Patriotismo, e
da fé em Lisboa como capital da civilização. E,
portanto, o que você fez, com a sua costumada veemência, foi plonger
le diable dans un bénitier. Daí os berros e os couces.
Couces e berros, sobretudo de espanto. Porque enfim, eu
tudo podia esperar do seu espírito, tão impressionável e ardente, menos essa
atitude de pudicícia ofendida e de magoado patriotismo. O que era com efeito de
esperar, dada a sua índole e os seus escritos, era que você criticasse o
livreco, sob o ponto de vista do próprio livreco; e que, como legionário da
mesma legião, ocupado também neste belo trabalho da literatura contemporânea,
que consiste em fazer o inquérito experimental das sociedades, me censurasse
só por os meus golpes não serem bem destros, nem bem certeiros, nem bem úteis,
nem bem claros, nem bem eficazes. Mas vê-lo de repente surgir no campo inimigo,
com uma sobrecasaca séria de conselheiro de Estado, gritando — “Em Lisboa não
se deve tocar! Tudo aqui é puro, belo, e grande! Vergonha ao maldizente que
ouse rir da cidade incomparável, perfectissima Urbs!” — eis o que
verdadeiramente me assombrou! Por que tão singular mudança? Ó Fialho, foi você
eleito diretor-geral de um Banco? É você o inspirador de um sindicato? Recebeu
você, das mãos do monarca, a grã-cruz de São Tiago? Está você diretor-geral de
uma grande repartição do Estado? Que interesse supremo o fez aliar-se ao
Conselheiro Acácio? Está você, por acaso, apaixonado pela mulher de Acácio, e
finge-se assim pudico, ordeiro e patriota, para lisonjear o benemérito e
cornudo homem… Sapristi, je crois que j’ai touché juste!
Nessa sua crônica sobre “Os Maias”, Fialho, há uma mulher!! Se assim é, (e
estou certo que é assim) como você deve ter sofrido, pobre amigo! Conheço essa
situação, é medonha!… É ela ao menos bonita, e cochonne?
Sério, sério — a sua crônica, escrita com a sua costumada
verve, espantou-me. Que você fizesse ao calhamaço um enterrement
de primeira classe, bem está! O grosso cartapácio, com mil bombas, fervilha de
defeitos! As duas próprias cenas que você incondicionalmente louva, estão bem
longe de me agradar! Mas que você fizesse a vista grossa sobre esses defeitos,
para se lançar sobre mim com indizível fúria e acusar-me de falta de respeito
pelas nossas virtudes, pela nossa elevação
moral, pela grandeza da nossa civilização, e pelo esplendor de
Lisboa como capital — é forte! Cousa espantosa ver o meu velho
e rebelde Fialho repetir, quase ipsis verbis, um grande rasgo
patriótico do Tomás Ribeiro, há anos, nas Câmaras, declarando “traidores os que
faziam, em escritos públicos, a crítica dos nossos costumes”! O Ramalho fez,
sobre essa saída do lírico da Judia, um artigo extraordinário nas
Farpas.
Esta carta já vai longa. E não me alargo por isso mais,
além deste ponto de vista da sua crónica, — que foi o que me
impressionou. Havia, porém, nela, ainda outros detalhes, que eu desejaria
discutir com você, violentamente. Assim, diz você que os meus personagens são
copiados uns dos outros. Mas, querido amigo, numa obra que pretende ser a
reprodução de uma sociedade uniforme, nivelada, chata, sem relevo, e sem
saliências, (como a nossa incontestavelmente é) — como queria você, a menos que
eu falseasse a pintura, que os meus tipos tivessem o destaque, a dessemelhança,
a forte e crespa individualidade, a possante e destacante pessoalidade,
que podem ter, e têm, os tipos de uma vigorosa civilização como a de Paris ou
de Londres? Você distingue os homens de Lisboa uns dos outros? Você, nos
rapazes do Chiado, acha outras diferenças que não sejam o nome e o feitio do
nariz? Em Portugal há só um homem — que é sempre o mesmo
ou sob a forma de dândi, ou de padre, ou de amanuense, ou de capitão: é um
homem indeciso, débil, sentimental, bondoso, palrador, deixa-te
ir; sem mola de carácter ou de inteligência, que resista contra as
circunstâncias. É o homem que eu pinto, sob os seus costumes
diversos, casaca ou batina. E é o português verdadeiro. É o português que tem
feito este Portugal que vemos.
Outra cousa bem singular é você duvidar da exatidão de
certos detalhes, traços de sociedade, como as senhoras falando
de criadas ou apostando dez tostõezinhos nas
corridas, etc. Oh homem de Deus, onde habita você? Em Lisboa ou em Pequim?
Tudo isso é visto, notado em flagrante, e por mim mesmo aturado sur
place!
Mas não palremos mais. Vocês, em todo o caso, hão de
findar por me fazer zangar. O Carlos Valbom acusa-me de escrever à francesa, e
com galicismos que o arrepiam; e diz
isto em períodos absolutamente construídos à francesa, e metendo em cada dez
palavras cinco galicismos! Você, por outro lado, nunca tomou a pena, que não
fosse para cair sobre os homens e as cousas do seu tempo, com um vigor, uma
veia, um espírito, um éclat que fazem sempre a minha
delícia. E quando eu faço o mesmo, com mais moderação, infinitas cautelas, et
une touche très juste — você aparece-me, e grita, “aqui del-rei
patriotas!” É escandaloso. Para vocês tudo é permitido: galicismos à farta,
pilhérias à pátria, à bouche que veux-tu? A mim, nada me
é permitido! Ora sebo!
Positivamente, basta de cavaqueira.
Diga ao Oliveira Martins que eu lhe mando, por este
correio, mais fradiquice. E você, caro Fialho
creia sempre na sincera estima e verdadeira admiração, com que lhe aperta a mão
o seu muito amigo.
Bristol, 8 de Agosto de 1888
Bristol, 8 de Agosto de 1888
Eça de Queiroz