A aldeia é o meu cinema a preto-e-branco. Cenas,
gente, momentos, sobrepõem-se à rua e às canelhas de agora, e não é miragem ou sonho,
estado segundo. Chamo os defuntos e eles retomam a vida de
então, oiço-os, espalham em redor os cheiros perdidos do estrume, do suor, do
bedum e das cagalhetas. Gritam em vozes que reconheço e têm nome, acenam, dizem
as palavras simples do dia-a-dia, descobrem-se respeitosos ao toque do sino,
murmuram avés, pousam as mãos nas cabeças dos miúdos que pedem a bênção, desejam-se
boa-noite e santa paz.
Passam burras com fachas de palha, cântaros
de água, cargas de lenha. O fumo das lareiras escapa pela telha-vã. Uma mulher
corre com uma pinha a arder, outra esconde sob o avental o frango que assou no
forno. No muro do adro pousaram duas caixas de sardinha, donde escorre uma
salmoura que pinga para o chão e fede.
Já se fez escuro. Passa um homem com um
lampião pendurado numa vara. Ouve-se martelar no alpendre do ferreiro.
Estou sentado no pátio. Vi o filme
três vezes.