Por
ter andado longe, as recordações que tenho da casa de minha avó Elisa e do meu
avô Sapateiro ficaram pelos dezoito, dezanove anos.
Entrei lá quando meu pai faleceu, vai fazer
três décadas, e desde então, como se lhe tivesse posto um cadeado, faltava-me
coragem para rever o cenário de muitas vivências de menino e rapaz.
Esta tarde, porque era preciso dar um jeito
à porta de entrada, a sair dos gonzos, torta, esburacada por mais de cem anos
de canícula e frio de rachar, desandei a fechadura, mas demorou a arriscar-me
para lá da soleira.
Ruina, podridão, bafios maléficos, teias de
aranha em filmes de horror, paredes abauladas, telhas partidas, os degraus de
pedra-lousa meio-desfeitos, carcomidos os de madeira, desengonçado o corrimão.
Essa vista de olhos pouco deve ter durado, pois
num repente tudo rejuvenesceu, se compôs, voltou ao seu lugar, ganhou vida. O
lume ardia em volta das panelas de três pés, o chão estava coberto de amêndoas,
o fumeiro e os presuntos secavam em varas lá no alto, os cântaros ressudavam
água, alguém deixara uma albarda junto do escano. A luz vinha de um candeeiro
enfarruscado. Vi-me menino, correndo escada abaixo, a aprender quanto grão se deitava na
manjedoura das mulas.
Ouvi o carpinteiro dizer para sairmos dali,
não fosse cair algum barrote, e então, mal acordado, fui às arrecuas, despedi-me
do sonho, repus o aloquete nas memórias da minha infância.