segunda-feira, abril 23

Abutres

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 Vai-se encosta abaixo, atravessa-se a ribeira a vau, tão escassa é a água, segue-se o carreiro que há séculos, talvez mesmo desde que começou a haver gente por aqui, levava ao resto do mundo. A coisa de dois quilómetros aparecem de ambos os lados umas fragas que já de pequeno me assustavam, e continuam a meter medo, disformes, gigantesca, a ameaçar  despenhar-se.
Olho com respeito e temor aquele cenário de ópera. Nunca ali deve ter subido alma cristã, sarracena, ou troglodita, tão-pouco se atreve nele a bicharada de quatro patas, que aquilo é a pique, no melhor  reino de cobras e lagartada.
Fui lá ontem, voltei hoje, sentei-me na borda do caminho, perguntando-me quantos  antepassados meus o terão pisado, indiferentes à majestade do sítio, o pensamento voltado para a luta do ganha-pão e as ameaças de doença e desgraça.
De muito alto veio descendo um abutre, depois outro, um terceiro, um bando a circular sobre as fragas. Fiquei a observá-los, tomado dum medo irracional, primitivo, ao recordar que vêm sempre de longe, chamados pelo cheiro de morte e podridão.
Assobiei ao cachorro. Voltámos ambos a casa a falar dos poucos coelhos, deitando de vez em quando uma olhadela aos abutres, agora simples pontos num céu de tormenta.