segunda-feira, abril 26

Conselhos seriamente fingidos


1 – Disse alguém que "a cozinha italiana deve ter de tudo um pouco, mas esse pouco abundante." O mesmo vale para a leitura. Bom, péssimo, medíocre, banal, excepcional,, leia em abundância e de tudo: Camilo, Eça, Vieira, Guimarães Rosa, Bocage, folhetos medicinais, instruções para uso, anúncios, necrologias, nomes de ruas... No meu começo, aí pelos oito nove anos, foi-me de grande utilidade e deixou impressão duradoura a leitura do Regulamento Geral das Alfândegas (1928).


2 – Entre em transe. Se lhe parecer custoso tente atingir aquele estado segundo em que não se ouve a família, nem a televisão, nem os vizinhos, e em simultâneo tente esquecer. Esqueça a hipoteca e o talento de A., a fama de B., o êxito daquela besta que escreve mal e vende dezenas de milhar. Esqueça. Seja firme, esqueça, e escreva . Desânimo? Dor de cabeça? Náusea? Medo? Continue a escrever.


3 – Pegue num texto alheio, em português, de preferência moderno. Surpreenda-se com o uso e abuso da palavra "não". Encontrará o ditongo repetido em substantivos e formas verbais. Leia em voz alta e o mais provável é que lhe perguntem porque está a ladrar.


4 – Evite acessos poéticos de raiva e desespero. Guarde tudo o que escreve, mesmo o que lhe parece péssimo. Deixe passar meses. Releia. Constate que o seu juízo crítico não é aquele instrumento infalível de que tanto se orgulhava. Aqui e ali encontrará uma bela frase, uma descrição realmente poética, um bom diálogo.

Isto, porém, aplica-se somente ao texto acabado. Na feitura a regra é o corte sem piedade. Leia e releia, corte e volte a cortar. Por contas que em tempos fiz, em cada página que me parece pronta há três ou quatro de cortes, e quando a vejo impressa ainda descubro o que devia ter cortado.


5 – Diálogos. Arte bicuda, calcanhar de Aquiles de muita prosa. Há escritores que como que perdem a cabeça ao pôr os seus personagens a dialogar. São surdos, ignoram como se fala à sua volta, ou querem fazer chique e rebuscado, na ilusão de que na literatura, como em Cascais, tudo é gente da alta falando em mais-que-perfeitos e conjuntivos.

Ainda é delicado dizer estas coisas, mas já agora que toco em classes, os diálogos mais desastrados da literatura portuguesa encontram-se nos romances neo-realistas. O povo, ali, fala no tom dos cardeais de Júlio Dantas.


6 – Na boa prosa há ritmo, melodia, pausas, há crescendi e fortissimi (não se deve abusar destas mostras de saber, mas uma vez não são vezes), mal vai àquele que escreve ficção sem ser dotado de bom ouvido musical. Nunca se dará conta do mal que escreve, como ignora que canta desafinado.


7 – O leitor merece incondicionalmente o seu respeito. O leitor partilha consigo intimidades e momentos de emoção que esconde ou nega mesmo a outros que lhe estão próximos. Tenha isso em mente, ofereça-lhe o que tem de melhor.


8 – Não perca tempo a invejar a produção de fulano que, como se andasse grávido, todos os nove meses dá nascença a um livro. Escrever é paixão, fado, impulso que vem do mais fundo. Uma vez por outra traz benefícios, mas não é um comércio.


9 – Tenha presente: um escritor não é um saltimbanco. Por respeito a si próprio evite dar-se em espectáculo. Mesmo que tenha seguido um curso de dicção – seguiu? - recuse ler prosa sua num palco. Os sádicos adoram, o resto do público aprecia pouco e isso nota-se na moleza das palmas.


10 – Dedicatórias impressas na primeira página? Nunca. Os amores morrem, as amizades perdem-se, chega sempre o tempo em que é doloroso o confronto com as palavras que exprimem sentimentos defuntos.

Continuo grato ao amigo a quem um dia quis dedicar um romance e ele, lendo as duas linhas da minha admiração, resmungou: "Isso é prosa do presidente da junta a dar boas-vindas ao presidente da câmara. Não ponhas."

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PS. Bem prega frei Tomás: eram quinze, mas no texto acima ainda nove vezes se repete o fatal "não".

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Publicado no número de Abril da LER.