“Mais uma carta de Albert, a quinta desde que partiu para o Chaco, datada de Las Lomitas. Páginas densas de letra miúda, que guardo para ler mais tarde, de repente perturbado pelas recordações, tudo vivo como se estivesse a acontecer.
Las Lomitas. O barraco que servia de estação. Dum lado e doutro os carris, perdendo-se no longe da planura. Duas filas de cabanas. A rua enlameada. O cheiro pungente e adocicado de cadáveres de soldados apodrecendo ao sol, inchados, roídos dos cães. Gran Chaco. Outra vez a guerra. O choro lancinante das mulheres. A minha meninice.
Albert partira em busca de um sonho impossível, desfeito, inútil. Mas cada uma das suas cartas anunciava amanhãs esperançosos. Em breve teria “um encontro definitivo,” estava a ponto de descobrir “elementos determinantes,” ou garantia a realidade de “preciosos contactos pessoais.” Com quem, para quê, eram detalhes que não tocava, receando talvez que mais uma palavra desfizesse a miragem. Era o seu sonho. Para que havia eu de acordá-lo?
Fizera-se fotografar ao sair de Horqueta. Escarranchado numa mula, poncho enrolado, chapéu gaúcho, cinturão, bornal a tiracolo, alpergatas. O retrato da ingenuidade.
Albert, o missionário sem igreja, para quem a revolução, qualquer revolução, só pode ser uma grande quermesse fraternal. Todos, homens e mulheres, crianças, anciãos, unidos todos no esforço vitorioso contra o inimigo. Um inimigo que, para Albert, é tão irreal e nevoento como as suas visões de revolta. Morto, não sangra. Desaparece sem apodrecer. Os exércitos triunfantes entram nas cidades cantando hinos, carregados de flores, a música atrás, o povo a acenar.”
(in A Sétima Onda)