domingo, março 13

Andar às arrecuas

 

Não é de hoje, antes fosse, mas se recordo, digamos, a última década do século passado, pode ser ilusão minha ou perda da memória, tenho ideia de que nesse tempo, os meus semelhantes estavam longe de alcançar algo parecido com o espírito missionário de hoje em dia, quando rara é a conversa que, trocados os salamaleques, não descambe para as sugestões, os conselhos, os avisos e as salvaguardas, um arremedo de gentileza e preocupação, que tanto se pode tomar por curiosidade despropositada, espírito pidesco, como um suposto cuidado com o bem-estar do semelhante.

Que bicho terá mordido essa gente? Converteram-se ao budismo? Terá sido da visita aos incas? Um recomenda manter em casa correntes de ar, para que a energia do feng shui dissolva as forças negativas, causadores de enxaquecas, perturbações mentais, inexplicáveis mudanças de humor e de sentimentos.

Quer outro que todos os dias, duas vezes quinze minutos, mas no quarto por ser mais seguro, me obrigue a andar às arrecuas. Garante ele que há séculos o fazem na Lapónia e é excelente treino para o equilíbrio mental e físico.

Um terceiro aconselha-me a que lhe siga o exemplo: há anos bebe em jejum um copo da própria urina, a maneira mais eficiente de restabelecer o equilíbrio dos minerais no corpo, aumentar a resistência às infecções, garantir a elasticidade da pele, evitar o Alzheimer.

Domingo sim domingo não batem os jeovás à porta, frenéticos na simpática urgência de me ajudarem a salvar o corpo e a alma.

A todos sorrio, a todos agradeço, mas andaria mais calmo e bem humorado se me deixassem com os meus medos, os meus achaques, o desequilíbrio dos minerais, a pedra na bexiga, e na ignorância das intenções, que agora e na eternidade o Todo Poderoso tem para comigo.