domingo, dezembro 12

O que conta é a fé

 

Ninguém brinque com a devoção da Amélia, ou julgue que é caso para rir o ela às tardes estender um tapete na sala, ajoelhar-se, e com dificuldade, devido não só à gordura, mas também porque aos sessenta o corpo já não é o que era, curva a cabeça e tenta beijar o chão. Tenta, não consegue, repete  umas quantas vezes, até que  a bufar, o corpo dorido do exercício, se arrasta para o sofá e deixa-se cair nele, resistindo a cerrar os olhos um segundo que seja, pois sabe que deixando-se adormecer ali depois do “exercício”, talvez só se a casa começasse a arder seria capaz de acordar.

Aquele ritual de estender um tapete, ajoelhar-se e depois esforçar-se por beijar o chão, começou-o ela  faz tempo, uma noite em que um sujeito qualquer apareceu na televisão a explicar o que era o islamismo e porque razão os árabes rezavam cinco vezes ao dia.

O que ouviu deu-lhe que pensar, e a ideia não a deixava de que a fé católica em que tinha sido criada, talvez não fosse bem aquilo que lhe tinham ensinado e se dizia. Se os árabes rezavam doutra maneira, como é que ela ia saber se só havia o Deus dos cristãos? E se houvesse dois, o nosso e o deles? Teríamos de rezar a ambos? Ainda por cima punha-se a questão da língua, porque pelo que tinha ouvido a reza deles era muito diferente, não tinha nada que se parecesse com padre-nossos nem avé-marias.

Andara meses a remoer, mas embora não lhe faltassem amigas havia assuntos que achava demasiado íntimos para discutir com elas, como também não ia arriscar que começassem com falatórios ou lhes parecesse que estava a ficar fraca da tola.

Enviuvara cedo, no casamento tinha sido infeliz, mas agora em certas ocasiões sentia a falta de alguém com quem se pudesse aconselhar, embora se fosse vivo, trombudo como era, só interessado se o dia estava bom para ir com os amigos à pesca, o Adalberto nem sequer seria hipótese. A falar verdade, mas isso a ninguém o confessaria, tinha fingido bem as lágrimas de viúva, mas perdê-lo fora um alívio.

Porém agora, como aquilo das cinco orações dos árabes não lhe saía da cabeça, nem queria ter com ninguém esse tipo de intimidade, resolvera experimentar, mas à sua maneira. Não cinco, só uma vez ao dia. Desdobrava o tapete, ajoelhava-se, e curvada até onde o corpo lho permitia tentava levar a cabeça  ao chão, mas o resultado era sempre o mesmo. Depois erguia-se a custo, arrastava-se até ao sofá, e sinceramente preocupada com a hipótese de haver um Deus cristão e outro dos árabes, rezava dois padre-nossos.