segunda-feira, março 29

O racismo nos corações

Para Paolo S. Damiani

Meu caro Paolo,

Ao contrário do que supões, não me preocupo por aí além com manifestações racistas, nem jamais me passou pela ideia abandonar a Holanda por temor do racismo. Como é sabido, e por mais abjectas que elas sejam, em democracia cada um deve ter a possibilidade de exprimir as suas opiniões. Fora isso, devo-te confessar que, talvez por só os ter visto na televisão, o espectáculo de um grupo de racistas a marchar com bandeiras e siglas, uivando, os rostos distorcidos pelo ódio, leva-me a sorrir. Porque, mau grado o seu gesticular marcial e a violência de que por vezes usam, esses são os ingénuos que saem à rua e se dão a conhecer. Também me sossega a evidência de que a polícia e a lei agem com eficácia contra os excessos, e que um bom número de cidadãos se acha suficiente mente imbuído dos valores democráticos. Desse lado, portanto, nada de aflições. Mas concordo contigo em que, no que toca a racismo, não há matizes, nem níveis, nem percentagens. Não é questão de racistas maus, racistas menos maus, meios racistas ou racistas quase bons. Nesse particular forçoso é passá-los todos pela mesma peneira. Por conseguinte, embora sejam variadas as razões do ódio racial, não vejo diferença entre o racista holandês ou alemão que quer os imigrantes expulsos, o francês que persegue os árabes, o racista lisboeta que agride os cabo-verdianos, o chinês que chama «cães» aos estrangeiros... E assim por diante, neste nosso desavindo mundo de bósnios, sérvios e croatas, de pretos, mulatos e brancos, judeus, muçulmanos, cristãos, até aos hutus e aos tutsis do Ruanda, onde os primeiros cortam os pés dos tutsis para lhes diminuir a altura, e estes cortam os tendões do pescoço dos hutus, obrigando-os a suportar a cabeça com as mãos, até que muito lenta e muito dolorosamente morrem. Em essência, pois, e como antes disse, não vejo diferença entre uns e outros. Mas enquanto aqui pelo pólder, ou na sua vizinhança, não houver ameaças de linchamento nem suspeita de se importarem hábitos africanos, eu continuarei a dormir como de costume: umas noites bem, outras noites inquieto. Dá-se o caso que se em certas alturas os perigos que acima menciono me parecem distantes e hipotéticos, outras há em que a campainha de alarme que todo o emigrante tem na cabeça se põe subitamente a retinir. É que no dia-a-dia ocorrem por vezes pequeninos nadas que são outros tantos sinais dos sentimentos de ódio, superioridade e desdém que fervem escondidos nos espíritos. Então, talvez porque, nas cinco décadas que aqui levo, nunca consegui libertar-me por inteiro da consciência de me saber em terra alheia, surge à minha frente a longa procissão dos fantasmas dos perigos reais e dos perigos imaginados. Nesses momentos de pouco adiantam as recomendações de serenidade e os confortos dos que me querem bem, pois por toda a parte vejo racistas, e mesmo nas observações mais neutras descubro resquícios de xenofobia. Felizmente essa paranóia é de pouca dura, e se numa ou noutra altura me afecta o sono, ainda me não perturbou o equilíbrio. Contudo, água mole em pedra dura... De facto,

mal tenho tempo de me refazer dum choque, que já outro me atordoa. Tempos atrás escutava eu por acaso na rádio um programa sobre a situação das mulheres holandesas casadas com estrangeiros. Assinalada, como de costume, a seriedade da pesquisa sociológica efectuada sobre o assunto, e debitadas as banalidades habituais sobre as diferenças de cultura, o pro-grama ia deslizando em repetições, até que a uma das participantes ocorreu fazer uma observação para aprofundar o debate. Segundo ela, e aqui cito-a literalmente, «uma holandesa que casa com um turco ou um português perde status. Também são gente, mas enfim... são inferiores».

Como português, como homem e pessoa, senti-me, sinto--me ainda, profundamente ofendido. Mas em vez de protestar calei-me, na certeza de que nenhuma autoridade aceitaria aminha queixa. E é isso que por vezes torna frustrante e amarga a situação do emigrante. Pela lei ou pela força, ele sempre se pode defender dos tarados que saem à rua com uniformes e bandeiras, mas nada o protegerá contra as formas piores da discriminação e do racismo: as que vivem escondidas nos corações.

 

In Mazagran