domingo, janeiro 3

O caso com Joana

 

Pobre David, que de si próprio diz ter chegado àquela idade em que tudo são decepções e contratempos, nada acontece como devia acontecer, até a própria memória lhe parece destrambelhada quando insiste em reavivar situações que, tivessem elas ocorrido ligeiramente diferentes ou ele fosse capaz de se mostrar mais assertivo, mais homem, os seus dias não sofreriam o ramerrão do solteiro que se descobre reformado e a perguntar-se como foi possível a vida correr-lhe de tal modo.

Desde há uns meses, com pontualidade de cronómetro, quando à noite dá a volta à casa a certificar-se que tem tudo trancado e fica depois um instante a olhar a rua, a memória traz-lhe muito real a visão do momento em que, como numa outra vida, se despediu de Joana à porta do hotel, a viu atravessar a rua e à esquina desaparecer para sempre da sua vida.

Não recorda o motivo para dessa vez terem ido jantar, nem como depois ela o acompanhou ao hotel, mas tem ainda muito viva a memória de horas sentados no hall, do que conversaram, das confidências que se fizeram, do carinho que os levou a ficar de mãos presas, ambos a sentir que o que diziam já era fingimento. De súbito há um vazio de detalhes que por vezes consegue recompor, mas sempre incompletos, embora recorde ter-se sentido incapaz de sugerir irem para o quarto, pelo  simples motivo de que não saberia lidar com a recusa. Então, num modo brusco disse que se estava a fazer tarde, levantou-se e acompanhou-a até à porta, beijou-lhe a face, ficou a vê-la atravessar a rua e desaparecer na esquina.

O remorso tomou-o ainda antes do ascensor chegar, já arrependido da grosseria e da ocasião perdida, a censurar-se de que se fosse mais experiente teria chamado um táxi, acompanhava-a a casa, deixava-lhe a iniciativa e o mais provável era que tivesse sido esse o começo da relação por que sempre ansiara e há muito sabia que nunca iria ter.

Um dia chegará em que a memória de Joana e do momento comece a esfumar-se, se bem que por enquanto ele tudo faça para avivá-la, menos para se atormentar do que para manter o sonho do que podia ter acontecido.

Liga o computador e começa a busca, escolhe a fotografia que mais lhe agrada, aumenta-a até encher o ecrã e fica a encará-la, tomado por um sentimento que tem tanto a ver com a pessoa que nessa altura Joana para ele foi, como com a situação que ainda o envergonha por se ter sentido tosco, o obriga a confrontar a fraqueza do seu carácter e a mesquinhez que é uma vida sem risco e de ocasiões perdidas.