domingo, dezembro 6

O soprano na casinha

Há quem pela enésima vez não se canse de repetir que a televisão tem uma enorme influência na vida de todos, mesmo na daqueles que nunca ou raro a vêem. Fala-se então de modo geral, pensando em como os anúncios manipulam a compra deste e daquele artigo, as escolhas políticas, a preferência dada a isto e àquilo, a fama de um actor e assim por diante.

Pode contudo parecer exagero afirmar que a televisão influencie de tal maneira a relação de um casal que daí resultem cenas por vezes cómicas, mas também outras de inesperadas e nem sempre divertidas consequências, conflitos que deixam os cônjuges à beira do ataque de nervos, às vezes demorando para que sem aborrecimento se possa aludir a eles.

A Ermelinda e o Adalberto estão naquela fase da vida que alguém já comparou às marés, pois do levantar ao recolher o seu dia-a-dia iguala a regularidade desse fenómeno, como também alternam nele as ocasiões de enchente e vazante, por ser Ermelinda mulher de sangue na guelra e o Adalberto um pachorrento com acessos de brincalhão.

Felizmente vai mudando, não só porque a idade começa a contar, mas também devido a que por duas vezes desde Março, quando começou isto da pandemia, a sua queda para exagerar a brincadeira poderia ter resultado em desastre. De uma preferem não falar, porque se deu numa situação de intimidade e teve consequências tão aborrecidas que ambos concordam que o melhor é esquecer. Mas a ideia para a outra foi ele buscá-la à famosa série da TV dos anos noventa, "Os Sopranos", uma cena em que os mafiosos estão à conversa num bar e a certa altura reparam que o que foi à retrete nunca mais de lá sai,  resolvem ir ver e descobrem que morreu de um ataque cardíaco.

O Adalberto tinha achado aquilo ao mesmo tempo trágico e cómico, o defunto sentado na retrete, calças caídas, parecendo que estava a ler o jornal, de modo que uma tarde, aborrecido com as proibições do vírus decidiu que chegara a hora. Franziu o nariz, preocupado, fez os trejeitos de quem se sente indisposto, passou a mão pelo peito, pelo ventre, e com o jornal acenou que se ia aliviar.

Quando se despediu da irmã no FaceTime Ermelinda deu-se conta de tê-lo visto acenar-lhe, mas há tanto tempo… Sobressaltada foi a correr, abriu a porta de repelão e lá estava ele na sanita, calças caídas, de cabeça baixa, o jornal nas mãos.

- Grandessíssimo filho da…

Deu-lhe um empurrão mas logo se arrependeu, assustada: o sacana sabia mesmo imitar e deixou-se cair, teso como se já estivesse em rigor mortis.