terça-feira, dezembro 15

Cartas a Eça de Queirós (3)

Caro Mestre,

Antes de começar esta recolhi-me em meditação, porque me sinto destravado e quase certo que se não me acautelo vou exagerar, as coisas chegaram ao ponto em que poucos se arriscam a críticas. Os do lado bom usam um uniforme que lhes tapa a boca, juram que só os irresponsáveis não têm medo, aguardam a vacina com aquela fé que criticam nos que em Fátima se penitenciam de rastos até que os joelhos sangrem.

Do lado mau somos uns quantos, mas os bons, além de infinitamente mais, têm a faca, o queijo, os meio de informação na mão, e a lei, por isso de nada adianta refilar, nem vir com argumentos como o que há pouco li, que a primeira vaga de confinamento na Holanda, com a consequente diminuição dos cuidados médicos, significou a perda de mais de 50.000 anos de vidas saudáveis. E já estamos na segunda, não demorará a terceira

Esses e outros dados, por exemplo o de que lá ficam por fazer muitas dezenas de milhar de exames de condução e são aos milhares as falências, poderia eu recebê-lo com o distanciamento que em geral se tem – melhor diria se tinha - com os terramotos no Japão ou a falência dos bancos. Todavia, acontece que o mundo encurtou de tal modo que tudo é vizinhança, dá a Rainha da Inglaterra um traque logo isso se sabe na Patagónia, e o mesmo  vale para este medo, asfixiante e tão espalhado que se sente em todos os gestos, todos os olhares, em tudo o que antes se chamava trato social e agora tem aspectos de guerrilha latente, o mascarado a olhar o "desmascarado" como assassino potencial, um imbecil que bem merece a multa e só com pena de prisão entrará no bom caminho.

Bem gostava eu de lhe dar boas notícias da pátria, mas a infeliz não mostra força nem talento para aprender outro papel, continua a representar a velha e estafada tragicomédia, agora com a diferença de que não precisa de empenhar os anéis, e até vive melhor de mão estendida à caridade.

Porém, de um lado a pandemia – mais vão chegar, que politicamente dão grande jeito – e do outro a miséria, o panorama é pouco animador, se alguma vantagem se lhe pode encontrar é a de que estes políticos e estadistas são um manancial para aquele que se der a escrever comédias, pois além de que nenhum tipo lá falta, para êxito assegurado basta retratar  muitos deles tal como são e aproveitar-lhes o vocabulário.

Suponho que por vezes se encontra com o João da Ega e ele de certeza gostará de saber que, embora a manquejar, a pátria vai acompanhando o progresso, mas continua a merecer o qualificativo que ele lhe dava.

Cordial e respeitosamente,

JRC