quarta-feira, dezembro 9

A prova de vida

É quase certo que enquanto viveu nunca ninguém o tratou por senhor. Era simplesmente o Jaime. Para a mulher, os vizinhos, o patrão, o padre, as crianças e o correio. Os filhos, sete ao todo, falavam-lhe mais por acenos do que com palavras, se se lhe referiam não passavam do ele. Ele tinha saído cedo. Ele estava na horta. Ele não iria à feira. Os pequenitos a brincar na rua ou os rapazes de cigarro no canto da boca, se alguém lhes perguntava se tinham visto passar o homem da senhora Mariana, retorquiam prontos: - O Jaime?

Não era maldade ou desdém, nem sequer desleixo, apenas o háito que tinha nascido e ficado. Um sinal a marcar no incons­ciente de todos que o Jaime, sem ser o tolinho da aldeia, vivia numa disposição especial e própria. Respondia sim, respondia não, encolhia os ombros, fazia com acerto o que lhe mandavam. Mais nada. De longe a longe, nas noites de Verão, juntava-se aos que discutiam à porta da taberna, a ouvir calado, sempre com o mesmo sorriso, contente quando alguém lhe oferecia um cigarro ou um copo.

Trabalhador. Agarrado à enxada, ao arado, a ceifar nas encostas ao sol de Agosto. Sem queixa. Quando vinha o frio e era preciso apanhar a azeitona, só o Jaime trabalhava de boa vontade. Os mais, se o patrão não estava, acendiam fogueiras, apanhavam uma hora e descansavam duas, deixavam-no ir sozinho pelas ladeiras cobertas de geada. E ele sorria, sacudia a cabeça, embrenhado no seu mundo de silêncio.

O casamento com a Mariana tinha sido um arranjo. Ela era expedita, dessas raparigas saudáveis de quem os velhos dizem quando elas passam: não tarda a emprenhar. Mas órfã e pobre, a viver com uma avó que ia mendigar às terras de longe, para que se não soubesse. Sabia-se, claro.

O Jaime tinha uma horta, uma burra e aquele defeito de ser calado. Ninguém lhe conhecia mais senão. Era bom jornaleiro, os patrões traziam-no nas palmas, só se embebedava nos dias de festa, e isso porque os outros apostavam que um dia ainda haviam de o fazer falar.

O namoro foi curto, o padre celebrou-lhes o casamento entre duas missas, e o primeiro filho, um rapaz, nasceu como compete: aos nove meses.

O resto da sua vida quase se passou sem história. Ia à jorna, ia à feira, de meio em meio ano mandava ferrar a burra. Chamaram-lhe uma vez o médico por estar às portas da morte com uma dor no peito. Acirravam-no quando a mulher aparecia grávida. De brincadeira, a ver se havia maneira de o pôr a falar.

Inventavam absurdos. Que na feira de Izeda tinham visto a Mariana aparceirar com um cigano e meterem-se depois ambos por um campo de trigo.

- Faz as contas. A Catarina nasceu em Março. A feira é em Julho. E da feira a Março quanto tempo vai? Diz lá. Ó Jaime, onde é que ias arranjar aqueles olhos azuis da rapariga?

Sorria. Os outros, cansados, desinteressavam-se, falavam do tempo que ia mau, das contribuições, da guerra que tinha começado na Alemanha. Muito longe. Nessa altura não imaginavam onde fosse, nem acreditariam se lhes dissessem que os filhos e os netos iriam para lá um dia. Que voltariam esgotados, mas ricos. Meio esquecidos da língua materna, a fazer rir com a algaraviada. "Ich fil arbaita. Tag arbaita, nagt arbaita. Ziva iar, drai monata unde tzvai woka. Filadank, fiderzin. Doitchland gut. Portugal auk gut. Fil essa, fil trinka, fil chelafa."

Isso, porém, estava no futuro remoto, muito antes de ser feita a estrada e de vir o telefone. Os ricaços de mais tarde, com carros de luxo e notas de conto, andavam ainda de cu ao léu a chafurdar na única rua, quase sempre coberta de palha, pois com a lama e as penicadas se fazia um excelente estrume.

A aldeia era pobre, tristonha, as casas de telha-vã. A uma que tinha varanda e ombreiras de cantaria, mandada fazer por um reformado, chamavam-lhe "o palácio." Mesmo os que se sentiam remediados, por terem mais terra e mais árvores, vestiam remendos como os outros, conheciam o mesmo passadio: pão e batatas, batatas e pão. Viam a carne no dia da festa, quando punham o fato bom, que tinha sido do casamento e lhes seria o da mortalha.

Vivia-se ali num grande isolamento, seis léguas de mau caminho para chegar ao comboio ou à estrada. Mas as pessoas recordavam maravilhadas a noite clara em que tinham visto passar um avião cheio de luzes e música, jurando que a gente lhes acenara, debruçada nas janelas.

Numa outra altura, alguns que andavam no monte, presenciaram abismados o milagre de ver o sol rodar e cair numa língua de fogo, tal como o padre tinha anunciado que haveria de acontecer. E mais. Então ainda se encontravam nas encruzilhadas as marcas da dança das bruxas com o Diabo. O mal dos pulmões curava-se com a aplicação de ventosas, e para as hemorragias internas iam-se buscar sanguessugas às nascentes. Às crianças presas dos intestinos metia-se-lhes no cagueiro um pé de couve untado com azeite, diziam-se três Avé-Marias, e elas obravam.

Duas vezes por ano aparecia a patrulha da Guarda, comandada por um cabo, com a obrigação de se informar se tinha havido "ocorrênci­as" e, por não haver regedor, de passar pela taberna, onde o taberneiro guardava o carimbo para legalizar a guia-de-marcha.

O cabo e as praças, com horas de monte e equipados conforme o regulamento: manta, bornal, cantil, cartucheiras, baioneta, espingarda Mauser, revólver, cinturão, polainas, dólman e outros pesos, chegavam ali derreados, a suar que metia dó.

Ao darem as boas-tardes já o taberneiro lhes punha o copo diante, e daí a nada, refeitos, tinham à volta um ajuntamento de homens e fedelhos, impressionados uns pelo aparato bélico, os outros para ouvir quem vinha de tão longe e era autoridade.

Existia nesses anos uma lei ridícula que obrigava os cidadãos a pagar uma licença cara pelo privilégio de usar isqueiro, só porque o fabrico dos fósforos era monopólio do Estado. Nas cidades havia "fiscais da licença de isqueiro", que vigiavam os cafés e as esquinas, impiedosos, prontos a multar. Nas aldeias era a Guarda encarregada desse controlo, e daí nasceu a ideia de que valeria a pena pregar um susto ao Jaime, a ver se sim ou não conseguiam que falasse.

Combinaram com o cabo. Na próxima visita da patrulha chamavam à taberna o "Calado" - era a alcunha que tinha - e sem ele dar por isso metiam-lhe um isqueiro no bolso.

Fizeram-se apostas. Com o medo falaria. Ou pelo respeito à farda. Outros mantinham que não: ia ficar como sempre, a sorrir, a encolher os ombros, a boca cosida.

- Se lhe dizem que o prendem, fala, ó se fala!

- Não fala. Nunca falou, não é agora que vai falar.

- E o medo? A multa?

- O "Calado" não é de medos.

Realmente não era. Na força dos trinta, seco, musculado, se havia desastre ou perigo era ele o primeiro a acudir. Pouco antes, no incêndio de uma corte, enquanto os outros gritavam e corriam desatinados com baldes de água inúteis, ele arrombara a porta aos pontapés e, sem se importar das queimaduras ou do risco, metera-se por entre as chamas a salvar as cabras do vizinho.

Formou-se uma roda em volta dele e do soldado que o revistava - tinham-lhe dito que houvera denúncia - todos a fingir de espantados quando o isqueiro apareceu.

- A licença? - perguntou o cabo, ríspido.

Jaime esboçou um sorriso, encolheu os ombros a mostrar que aquilo só podia ser brincadeira. Então, pobre como era, onde ia arranjar o dinheiro para um isqueiro?

- A licença? - insistiu o cabo.

Jaime teve o mesmo sorriso plácido, mas logo se retesou quando o cabo deu um passo em frente, a fazer-se furioso, e lhe segurou o braço:

- Então que temos? Falta de respeito? Hein? Falta de respeito?

E a cada palavra uma sacudidela, o corpo rígido, a palidez a aumentar, traindo a emoção. Os outros gritavam-lhe que falasse, negasse, assim que respondesse o cabo deixava-o em paz.

- Diz-lhe que não é teu.

- Mesmo que vendas a burra não te chega o dinheiro para a multa!

- Fala, sacana! Então não tens língua?

Cercavam-no aos empurrões, ele a suar, lívido, a boca escancarada, os braços paralisados. A taberna enchera-se de gente que tinha vindo ver, e os últimos a chegar, mal informados, julgavam que era a sério, mandaram que fossem avisar a mulher.

O cabo, razoável actor, demonstrava agora como se perde a paciência e, com grande autenticidade, num gesto terminante, deu-lhe voz de prisão. O Jaime arregalou os olhos, estremeceu, caiu fulminado.

Acudiram-lhe no mesmo instante, mas foi um desespero. Concordaram que brincadeiras assim eram um perigo. Não se assustava uma pessoa daquele modo, capaz até de lhe dar algum ataque e haver ali uma desgraça.

Encharcaram-lhe a cara com água de uma bacia. Desapertaram-lhe a camisa. Abanaram-no com uma toalha. Levaram-no depois em braço para cima de um banco para lhe escutarem o peito.

- Está vivo?

O que auscultara disse que não ouvia nada e o pulso também estava fracote, mas não haveria de ser coisa nenhuma, só desmaio, toda a gente sabia que poucos eram tão fortes como ele.

Passaram-se uns minutos e já as mulheres tinham começado a gemer e a carpir quando abriu os olhos. Um alívio. Ampararam-no a sentar-se numa cadeira e obrigaram-no a beber dois copos de vinho um atrás do outro. Para que arribasse. O próprio cabo acendeu um cigarro de maço e meteu-lho entre os lábios.

- Era a brincar, homem! Então não vês que o isqueiro é meu? - e dava-lhe palmadas amistosas, perguntava se já se sentia melhor.

Mariana entrou em pé de vento, empurrando os que lhe ficavam no caminho. Quando se certificou que ele estava vivo e são de aparência, deu aos presentes uma rodada de filhos-da-puta, pegou o homem pelo braço e levou-o dali.

Desde esse dia o Jaime tornou-se outro e aos poucos foi perdendo a força. Ficava horas sentado à porta de casa, sem um aceno aos que passavam, apático, imóvel, só quando a mulher o chamava é que ia para dentro. Nunca mais um sorriso, um encolher de ombros, o sim ou o não que tinham sido a sua única fala. Os patrões deixaram de lhe dar trabalho, porque podia menos. Os rapazes emigraram para a Alemanha e, casados lá, nunca apareciam. As filhas eram quase pobres de pedir.

Tornou-se um velhino ressequido, quase entrevado. Para os poucos passos que dava tinha de se apoiar a duas bengalas que ele próprio talhara de um galho de olmo e durante meses se entretive­ra a gravar com a navalha, enchendo-as de figuras toscas.

Tempos antes recebera pela primeira vez a pensão da velhice e a mulher, abraçada a ele com uma alegria a que não era dada, tinha-lhe dito que estavam salvos. De pobres não passariam, mas fome? nunca mais.

O correio trazia o cheque ao fim do mês, ele recebia-o às mãos ambas, olhava-o longamente, virava, revirava, descrente e desconfiado, até que Mariana aparecia da lida e o arrecadava na cómoda.

Nos dias de feira - já havia estrada e carreira - ia ela descontá-lo, sempre no temor de que lhe negassem o dinheiro que vinha assim sem mais nem menos, só por causa da idade, sem trabalho nem precisão de agradecer.

Um dia veio uma carta junto com o cheque e o carteiro, simpático, explicou que era por causa da "Prova de vida", uma lei nova.

- Vocês - ele tinha aprendido a falar desenrascado com as telenovelas brasileiras - botam aqui o nome, botam aqui um retrato. Depois os da Câmara botam um carimbo por cima e 'tá pronto. Tudo legal. Continuam a receber.

- Prova de vida?

- É. Por causa do retratos eles sabem que a pessoa 'tá viva.

O fotógrafo tinha dificuldade em atender a freguesia. Aparecia nas aldeia em dias certos, tocava a buzina do carro e os anciãos eram trazidos para o adro, onde ele montava o estúdio: um pano cinzento esticado entre duas colunas de madeira.

O Jaime, porém, tinha acamado, e só depois de muito pedir e de se prontificar a "pagar as luzes" é que Mariana conseguiu que o fotógrafo lhe fosse a casa.

O doente estava sentado na cama, o olhar fixo, amparado por almofadas, vestido de camisa e gravata, casaco, o chapéu na cabeça.

O fotógrafo deu-lhe as boas-tardes quase sem olhar, cheio de pressa, nauseado pelo fedor do quarto. Com movimentos rápidos montou a máquina no tripé, fez a focagem e ergueu o flash.

- Ora faça favor de se pôr um bocadinho mais direito. Olhe para este lado.

- Ele não pode falar - explicou a mulher - E ouve muito mal. Espere que eu o arranjo.

Mariana agarrou o homem pelos ombros, a querer endireitá-lo. Mas do mau jeito, ou por ter escorregado, ao mesmo tempo que o puxava caíram os dois da cama abaixo.

O fotógrafo correu a acudir, ainda se curvou para agarrar o doente e ajudar a erguê-lo, mas logo parou ao dar conta da expressão estarrecida da mulher e da imobilidade suspeita em que Jaime ficara: as pernas descarnadas e nuas apontando para o texto, o pescoço torcido, os olhos com a mesma fixidez.

- Vossemecê... - calou-se, sem saber como continuar, e num primeiro impulso dirigiu-se à porta. Mas, apiedado, estendeu a mão para que a mulher se levantasse e depois, em silêncio, ele pela cabeça, ela pelos pés, meteram o Jaime de novo na cama.

- Morreu de madrugada, coitadinho - disse ela entre soluços. - Veio infeliz ao mundo. Só teve a sorte de morrer em paz.

- Era para a "Prova de vida", a fotografia?

Ela acenou que sim, intimidada, continuando a chorar, o rosto escondido no xaile.

- Se vossemecê... - o fotógrafo hesitou um momento, depois encolheu os ombros. - Que raio me importa! Tira-se-lhe o retrato e o resto é consigo. Ponha-o lá direito.

- Com o chapéu? - perguntou ela escovando-o na manga.

- É melhor.

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in Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia - Quetzal, 2011

 

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