domingo, dezembro 27

A máscara do morto-vivo

Cada um é como o Senhor o criou, razão bastante para aceitar certos modos e comportamentos de pessoas que nos merecem amizade. Ao Manuel Sant'Anna perdoávamos as peneiras de grafar o seu nome com apóstrofo e dois enes, fingíamos de surdos ao gosto que tinha de usar um vocabulário empolado, pelo que nunca o ouviriam falar das manias mas das idiossincrasias de alguém, referir-lhe o semblante em vez do aspecto, e assim por diante.

É pena que tenha tão estranhamente falecido e recordo-o com saudade, pois foi amigo sincero, daqueles que sentem como suas as nossas alegrias e sempre prontos a ajudar nas horas de tormenta.

Dou-me por vezes a imaginar que a nossa estadia no planeta é um apeadeiro entre duas estações importantes, o nascimento e a morte, e que esta talvez não seja um término mas ponto de passagem para regiões superiores. Se porventura assim for, aqueles com quem privámos na Terra seguem algures uma nova e mais complexa existência, pelo que em certas ocasiões me sinto tentado a deixar mensagens para o Sant'Anna no Facebook, na esperança de que as receba onde agora se encontra, e me perdoe o riso escarninho com que num jantar de Consoada o ouvi falar da bruxaria da máscara mexicana que tinha comprado em Acapulco.

A primeira vez que dera com ela fora do lugar do costume pensou que fosse coisa da Idalina, a cabo-verdiana que arrumava a casa e lhe tinha dito que semelhante carantonha metia medo, dava a impressão de até ser capaz de falar. Quando uns dias depois a descobriu na cómoda não fez reparo nem incomodou a rapariga, encolheu os ombros e voltou a pô-la onde pertencia. Durante um tempo talvez não tenha mudado ou ele não deu conta, susto grande apanhou uma madrugada ao descobri-la encostada à mesinha de cabeceira, as órbitas vazias dando a impressão de o encarar com ameaça.

Com um pontapé atirou-a para o corredor e à tarde telefonou à Idalina para que a deitasse no lixo, descrente que ela respondesse que não lhe  tocava, era coisa ruim, se o senhor a quisesse obrigar então teriam de fazer as contas porque se despedia.

Acalmou a rapariga, não precisava de lhe mexer, deixasse-a ficar que ele a levaria para o contentor. Foi o que fez mal chegou a casa, e incapaz de lhe tocar empurrou-a com a vassoura, evitando aquelas órbitas de malefício que pareciam forçá-lo a que as olhasse.

O médico, que o sabia são como um pêro, estranhou  que tivesse caído fulminado. A Idalina é que não tem dúvidas, mas diz que sobre certas coisas o melhor é calar.